Foto: Thomas BauerO processo de ecocídio do Cerrado e genocídio dos povos-Cerrado acontece no contexto da guerra mais persistente de nosso tempo – e a mais difícil de vencer – que não acontece entre Estados-nação, mas é movida contra a natureza e os povos-natureza pelas grandes corporações e os homens que as comandam: a minoria dominante a qual Davi Kopenawa, grande xamã Yanomami, chama de “povo da mercadoria”. Essa guerra é muito mais difícil de enfrentar, porque os senhores da guerra se ocultam atrás de nomes de conglomerados feitos para apagar as digitais e se legitimar dia após dia pela repetição nos pregões das bolsas do ente intangível chamado “mercado”. (veredicto final da 49ª Sessão em defesa dos territórios do Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos, p.38)O crime de EcocídioA partir da premissa de que o Cerrado, savana mais biodiversa do mundo, não é um bioma ou um meio ambiente intocado, mas espaço de territorialidades e modos de vida diversos fruto do constante manejo da paisagem por povos originários e comunidades tradicionais há cerca de 15 mil anos, o veredicto final da sessão Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) assume que “todo genocídio é também um ecocídio – e todo ecocídio é um genocídio.”[1] O TPP aprofunda sua interpretação sobre o crime de ecocídio, radicaliza e expande o sentido do termo território como uma co-constituição entre povos-natureza, ou ainda, como a materialização das digitais históricas de um povo sobre o meio. A partir deste entendimento de território, a garantia dos direitos territoriais destes povos é, simultaneamente, condição essencial para a autodeterminação de seus modos de vida, contra seu extermínio físico e cultural, como também proteção do meio ambiente equilibrado para garantia do mínimo ecológico para as presentes e futuras gerações.Deste modo, o ecocídio não representa apenas um dos crimes ambientais que configura um dano grave ou perda de ecossistemas que gera severa diminuição de benefícios ambientais para os habitantes de um território, conforme a definição do crime de ecocídio no Estatuto do TPP. Implica também, em um ataque sistemático a identidade cultural de grupos que se co-constituem com a natureza, que tem nos saberes associados ao manejo da diversidade biológica sua condição de sobrevivência física, social e como povos culturalmente diferenciados da sociedade hegemônica. O crime de ecocídio significa, necessariamente, um genocídio cultural, um crime de racismo e discriminação de povos, a negação de identidades e da diferença em si mesma. Além de assumir explicitamente a dimensão cultural do crime de ecocídio, o TPP também entende que o ecocídio pode implicar no genocídio em seu sentido estrito, quando a redução da base material de reprodução social é capaz de levar à destruição física destes povos que com o meio sobrevivem.Sem território, há genocídio contra os povosSem acesso ao território tradicional, sem acesso adequado à água, sem biodiversidade, sem sementes, sem peixe, sem caça, sem alimento, sem cerrado em pé são minadas as possibilidades destes grupos manterem seus modos de vida como povos distintos da sociedade em geral. A estrutura de Estado voltada para os projetos de desenvolvimento em favor de corporações e investidores do agro-hidronegócio e da mineração no Cerrado vem retirando as condições mínimas para reprodução física, social e cultural dos povos do Cerrado. Segundo a sentença final emitida pelos jurados na sessão Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos, a negativa em demarcar os territórios dos povos-natureza constitui um delito de genocídio como inscrito no artigo 2, “c” da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio: “... mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física. Seus membros morrem ou aqueles que sobrevivem se submetem a um processo de integração à cultura dominante, assimilando a linguagem e o sistema de valores do colonizador. O povo preexistente deixa de existir. (...). Seus saberes tradicionais, especialmente no manejo da biodiversidade e na produção de alimentos saudáveis, não são considerados. Têm seus cultivos, suas medicinas e seus corpos marcados pela presença de agrotóxico. E o Cerrado, vítima de um modelo econômico de natureza colonial, predador, excludente e injusto, está seriamente ameaçado de morte. Tudo isso com o endosso dos poderes estatais, em todos os níveis, coniventes, inclusive, com as barbáries cometidas por empresas, muitas delas transnacionais” (Veredicto final da 49ª Sessão em defesa dos territórios do Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos, p 62).Este processo de ecocídio-genocídio só tem sido possível em razão da construção do Cerrado como infértil e irrelevante ecologicamente e dos povos do Cerrado como atrasados e pobres, o que justifica o processo de “limpeza” da terra – de sua vegetação nativa e de suas gentes, para ser integrado aos chamados projetos de “desenvolvimento”. Embora abrigue 5% da biodiversidade do planeta e funcione como um grande regulador hídrico continental, onde nascem os principais rios e aquíferos da América do Sul, o Cerrado é quase desconhecido do mundo. Ignorado mesmo por ativistas do clima, foi deliberadamente excluído da Lei desmatamento zero Europeia. Se mantém vivo quase que exclusivamente pela força de seus povos. Nesta região que cobre 1/3 do território nacional - considerado o Cerrado e suas Zonas de transição -, a intenção é apagar os territórios tradicionais do mapa, tornando-os invisíveis para uma série de políticas públicas. Segundo dados do IBGE, o Cerrado e suas áreas transição contam com 220 terras indígenas, embora os dados da sociedade civil especializada indiquem 338 territórios (Conselho Indigenista Missionário -CIMI), 53% a mais. Dos 1555 territórios quilombolas (populações afrodescendentes) identificados, apenas 32 resultaram em titulação total ou parcial coletiva de seu território (cerca de 2%). Apesar de serem reconhecidos mais 26 povos e comunidades tradicionais no Brasil - a maior parte delas, comunidades negras, entre extrativistas, quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, fundo e fecho de pasto, geraizeiros e muitos outros-, não há nenhum levantamento oficial quanto a seus territórios a nível federal.[2]No processo de sistematização de documentos para o Tribunal, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, apresentou um primeiro levantamento a fim de enfrentar este apagamento institucional (político, econômico, cultural), parte de uma política de racismo estrutural – ambiental e fundiário - do Estado brasileiro, que serviu e serve à colonização do Cerrado pelo capital.[3] Sem valor biológico e sociocultural, o Cerrado como “terra de ninguém” pode legitimar a apropriação de uma enorme quantidade de terras para exploração de monocultivos de grãos, de pastos para boi e para mineração, basicamente para exportação. Em 2021, foram exportados 77,2% da soja produzida no país. São cerca de 30 milhões de hectares– o equivalente ao território da Itália – para atender a demanda internacional de soja canalizada por estas empresas transnacionais, em especial para a China e União Europeia - e com ela a água e nutrientes do solo. O rastro de devastação e violência fica nos territórios dos povos do Cerrado. No último dia 08 de dezembro de 2022, a Associação de Fundos e Fechos de Pasto e a Campanha em Defesa do Cerrado denunciaram o ataque sistemático de pistoleiros a mando de empresas e fazendeiros no Oeste da Bahia, contra cerca 25 comunidades nos municípios de Correntina e Santa Vitória. Onde se insere um dos casos julgados pelo TPP.Soja transgênica e o Cerrado como zona de sacrifícioSurge, pela primeira vez, áreas maiores do que 1 milhão de hectares de soja colhida, como em Alto Teles Pires e Parecis no estado do Mato Grosso, Barreiras na Bahia e no sudoeste Goiano. E a propriedade fundiária no país tem cor: mais de 88% dos produtores de soja são brancos (Furtado, Kato e Barros jr, 2022).[4] Na mesma região, se perdeu mais vegetação nativa nos últimos 20 anos (13,47 milhões de hectares) do que nos 500 anos desde a invasão colonial até o ano 2000 (10,76 milhões de hectares).A escala e intensidade deste modelo agro-minero-exportador e as medidas e infraestruturas, necessárias para se viabilizar o Cerrado como um dos maiores exportadores de grãos do mundo, acaba por tornar as atividades econômicas do agro- hidro-minero-negócio, necessariamente, crimes econômicos e ecológicos, ao ponto de colocar os próprios ecossistemas e os modos de vida associados em risco de extinção. Intencional ou não, estes agentes aceitam a produção do Cerrado como zona de sacrifício, assumindo o risco potencial ou provável intrínseco às suas atividades econômicas e ao tipo de “desenvolvimento” perseguido: devastação ambiental e o extermínio de grupos étnico-raciais valorados historicamente como inferiores. Além dos projetos de mineração que cobrem cerca de 60 milhões de hectares (ha) com 30% do total dos processos ativos no país, e crimes-desastre como o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho da empresa Vale S.A, o TPP ressalta um caso particularmente claro do ecocídio e genocídio no Cerrado: o avanço das monoculturas de soja transgênica. Atividade econômica que produz o Cerrado como zona de sacrifício, tem como epicentro as cadeias globais de commodities controladas por corporações transnacionais do complexo soja-carne (a quase totalidade da soja produzida no Brasil é destinada à ração animal) e corporações financeiras que especulam com terra e commodities agrícolas.A transformação avassaladora da paisagem do Cerrado, que representa cerca de 45% da área destinada à agropecuária nacional, se deve principalmente pela expansão acelerada de monocultivos transgênicos de soja (legalizados em 2005), acompanhados do milho, algodão e cana de açúcar, que ocupam cerca de 47 milhões de hectares (ha). Isto transformou o país no segundo maior em área plantada com transgênicos no mundo, com mais de 50 milhões de ha: 35 milhões de ha com soja, 15 milhões de ha com milho, 1 milhão de ha de algodão e 400 mil ha de cana-de-açúcar (ISAAA, 2020). E também no maior consumidor de agrotóxicos, com quase 80% do volume total utilizados justamente nestes cultivos (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal –Sindiveg). O Cerrado se tornou um dos maiores mercados consumidores do pacote tecnológico das corporações de biotecnologia que monopolizam o mercado de sementes industriais e agrotóxicos: Bayer/Monsanto (Alemanha), Corteva (EUA, fruto da fusão da Dow Cropscience e Dupont), ChemChina/Syngenta (China/Suiça) e a Basf (Alemã). É também o principal mercado de processamento e exportação de commodities agrícolas, o que submete suas terras à uma teia de infraestrutura organizada por conglomerados agroindustriais estrangeiros. E de vários fundos de investimento estrangeiros, alguns tão marcantes quanto Teachers Insurance and Annuity Association of America o Harvard Endowment. Os fundos de TIAA e Harvard são os maiores compradores estrangeiros de terras agrícolas no Brasil e desde 2008, acumularam um total de cerca de 750.000 hectares, a maior parte no Cerrado.Por uma justiça que brota da terraEm um monumental esforço de resistência, os povos do Cerrado se reinventam a todo o momento, reorganizando politicamente sua cultura para construir direitos de protesto, um direito que brota da terra, para afirmar o direito a ter direitos. Ocupam terras e prédios públicos, realizam marchas, fazem retomadas de terras e autodemarcações, criam legislações reconhecidas pelo Estado, ou mesmo convocam um Tribunal dos Povos, legitimados nada menos que pelo seu direito a (re)existir como grupo culturalmente distinto. A partir deste direito que brota da terra, nesta sessão do TPP, seus povos anunciam que a terra não é propriedade e mercadoria, que não pode ser apropriada por quem tem apenas um papel, um título, por quem pode pagar ou tem o monopólio da força. Segundo os nascentes e resistentes do Cerrado, invasores são os que se apropriam e destroem a capacidade reprodutiva da terra. A campanha do Cerrado, portanto, renomeia como crime de Ecocídio e genocídio o modelo de desenvolvimento que implementa o Cerrado como propriedade privada e mercadoria para o lucro de corporações e investidores financeiros. Após 3 anos desde o pedido de instalação do Tribunal até sua audiência final (2019-2022), ao analisar as provas apresentadas em torno dos 15 casos representativos do Cerrado, o júri do TPP condenou: -O Estado brasileiro por crime de Ecocídio, que inevitavelmente envolve o processo de genocídio dos povos do cerrado; assim como o atual governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, por crimes econômicos e ecológicos agravados pelas reiteradas medidas de ajuste estrutural e desmonte de políticas e leis que representavam conquistas históricas de direitos;- Estados estrangeiros e organizações internacionais. Entre os Estados estrangeiros, o Japão foi condenado pela contribuição à implementação da revolução verde pela Ditadura Empresarial-Militar - na década de 1970, por meio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA); como também China e países que integram a União Europeia, por sua compra massiva de commodities que estão na base da monoculturação do Cerrado. Especial menção foi feita ao perigo de acelerar o processo de ecocídio-genocídio em curso pelo Acordo União Europeia-Mercosul. Entre as instituições internacionais, foram condenados o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), e em particular Banco Mundial, pela promoção e legitimação de reformas neoliberais que aprofundam o ecocídio-genocídio cultural no Cerrado. - Empresas transnacionais e fundos de investimento/pensão, cujas atividades econômicas estão vinculadas à violação de direitos fundamentais que causam e se beneficiam do ecocídio-genocidio no Cerrado, como Amaggi & Louis Dreyfus Commodities, Bayer-Monsanto, Bunge, Cargill, ChemChina/Syngenta, China Communications Construction Company, China Molybdenum Company, Condomínio Cachoeira Estrondo, Horita Empreendimentos Agrícolas, Mitsui & Co, Mosaic Fertilizantes, SLC Agrícola, Sul Americana de Metais S.A., Suzano Papel e Celulose, TUP Porto São Luís, Vale S.A., e os fundos de investimento TIAA-CREF, Harvard e Valiance Capital. Para ver a sentença completa e rol de todos os acusados, acesse este link (apenas em português).Para ver o conjunto de recomendações ao Estado Brasileiro para frear o Ecocídio e Genocídio no Cerrado, acesse este link (apenas em Português). [1] O Ecocídio como crime vem sendo trabalhado desde os anos 60, principalmente diante das consequências do uso massivo do Agente Laranja e outros herbicidas durante a Guerra do Vietnã. Em 2021 um grupo de juristas apresentou uma definição do crime de Ecocídio para ser incorporado ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.[2] Para conhecer um pouco sobre os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais do Cerrado, acesse a denúncia final apresentada ao TPP: https://tribunaldocerrado.org.br/sessao-cerrado/ [3] A Lei de Terras de 1850 (Lei nº 601/1850) criou o direito de propriedade privada das terras por meio de operações de compra e venda ou transmissão de herança, excluindo a posse e ocupação como meios de aquisição da terra, e portanto, todos os pobres do acesso legal à terra. Apenas em 1888 se deu a abolição da escravatura, o que significa a flagrante intenção de excluir a população negra do direito à terra. O bloqueio ao acesso à terra por parte de populações negras foi condição para o fim da escravidão e a declaração da república. [4] Pela primeira vez o Censo Agroecopecuário de 2017 inseriu indicadores de raça para analisar a estrutura fundiária brasileira, e revelou que a mão de obra no campo é negra, mas a propriedade é branca. Em grandes propriedades, com área equivalente a cerca de 10 mil campos de futebol, 79,1% dos donos são brancos, detendo 208 milhões de hectares (59,4%).