Sistemas de dados sobre as terras vêm sendo financiados pela cooperação internacional com a promessa de promover uma governança sustentável dos territórios;A extração e disponibilização de dados sobre as terras permite melhor “governança”, mas principalmente por aqueles que estão fora dos territórios; Para corporações e investidores, o acesso a informações atualizadas de um “perfil digital de terras” permite localizar, quantificar oferta e demanda e formar preços sobre as terras, a produção e recursos naturais, como os créditos de carbono; Trata-se de uma substituição tecnológica e de infraestrutura que possibilita uma troca de mãos do controle sobre as terras e de sua estrutura de governança, facilitando sua introdução nos fluxos financeiros, principalmente em favor de elites transnacionais.Muitos países vêm implementando, ao menos desde meados dos anos 90, a digitalização de seus cadastros e registros de terras a fim de padronizar e integrar informações sobre as terra e recursos naturais existentes sobre elas para otimizar sua governança para uma exploração sustentável do solo, urbano e rural.Segundo seus principais proponentes, como o Banco Mundial, a chamada “governança da terra” possibilita a formalização de direitos de propriedade individual sobre a terra, por meio de uma regularização fundiária simplificada, barata e célere, que permite sua comercialização no mercado de terras e o aumento dos investimentos.[1] Introduzir a terra no mercado como propriedade privada individual é, segundo eles, portanto, a chave para o aumento da produtividade agrícola e a geração de empregos, o que levaria ao desenvolvimento rural e a redução da pobreza nos países do Sul global.Segundo esta lógica, a coleta padronizada de dados georreferenciados por satélites sobre a terra, a cartografia e detecção de alterações no uso do solo de forma automatizada, como também a digitalização dos documentos de terras e o compartilhamento destes dados entre países de forma integrada, cria um “perfil digital da terra” capaz de maximizar os negócios sobre os dados e investimentos nos países emergentes.Como GRAIN revelou no relatório Cercas Digitais, de setembro de 2020, embora tais tecnologias possam ser usadas para identificar terras griladas, reaver patrimônio público ilegalmente apropriado e destinar terras para a reforma agrária, a estrutura destes cadastros “modernos” favorece a legalização da grilagem histórica realizada pelas elites locais, além de fomentar um novo ciclo, agora digital, de captura de terras nas chamadas últimas fronteiras agrícolas na América Latina, principalmente por agentes financeiros transnacionais.Cadastros e registros de terras: uma história contada pela propriedade privadaEstes cadastros de terras existem há muito tempo. Muitos datam ainda do período colonial, usados como instrumentos para delimitar o exercício de um poder central sobre determinado território e principalmente para estabelecer parâmetros de preço sobre cada área com características parecidas. Tinha como objetivo recolher impostos sobre a posse e propriedade da terra urbana ou rural pelos Estados. Posteriormente, com a regulamentação da propriedade privada e a enorme transferência de terras para a exploração por particulares, estes cadastros começaram a incorporar critérios legais e físicos (cartográficos) para melhor definirem a localização e os limites de cada imóvel individualmente e, então, servirem de base para a definição dos direitos de propriedade privada sobre a terra, com sua inscrição no registro de imóveis nos cartórios.[2]No contexto Latino Americano, instituir direito de propriedade em favor daqueles que detinham títulos concedidos pela Coroa ou dos que pudessem comprar as terras, significou a exclusão do acesso à terra e dos meios de produção fundamentais à reprodução da vida, de todas as pessoas não europeias e sem poder econômico - indígenas, negras escravizados, mestiças, mulheres. Cadastros e registros de imóveis funcionam historicamente como instrumentos de classificação das terras, entre públicas e privadas, a fim de apoiar a instituição dos direitos de propriedade e substituir as complexas relações socioculturais estabelecidas coletivamente por povos indígenas e camponeses. Este jogo de classificações realizada por cadastros e registros está no centro das mais violentas disputas na América Latina, e envolve povos indígenas, camponeses, afrodescendentes, estados, elites locais e transnacionais.A principal forma adotada para coleta de dados destes cadastros é a autodeclaração de informações e documentos fornecidos pelos próprios posseiros/proprietários. Não geram direitos de propriedade, mas servem de base para sua posterior formalização em registros de imóveis. Estes cadastros – que envolvem altos custos e profissionais especializados para a coleta de informações físicas e cartográficas das áreas -, somados à pouca informação dos Estados sobre a localização e a quantidade das terras públicas e devolutas existentes, historicamente favorece processos de captura de terras pelas elites nacionais. Com mais recursos econômicos e conexões políticas, estas elites locais podem formalizar a apropriação de grandes extensões de terras públicas - muitas vezes de forma violenta - e ocupadas tradicionalmente por povos e comunidades locais, efetivando o conhecido processo de grilagem de terras.Deste modo, quem conta a história da coleta e gestão das informações sobre a terra em cadastros e nos registros de imóveis são, majoritariamente, grileiros, que se tornaram grandes proprietários, e elites econômicas e políticas, por dominarem o uso da força, bem como da estrutura de “governança” das terras ao longo do tempo. Por esse motivo se dá a natureza fragmentada, precária e pouco precisa das informações dos sistemas de cadastros, com órgãos de terras e cartórios dominados pelas elites agrárias locais.Argentina, Gran Chaco, Salta, Wichi comunidade em risco de apropriação de terras. Foto : WestEnd61AgTechs: digitalização, microcrédito e endividamento no campoA democratização do acesso à smartphones levou a tecnologia geoespacial para as mãos de cada indivíduo, o que vem barateando e ampliando a digitalização da terra e recursos naturais. Segundo o Banco Mundial, a agricultura de precisão é o maior setor no mundo a utilizar serviços detalhados de geposicionamento por satélite (GPS). Entretanto, o Banco constata a necessidade de reverter o fosso digital e geoespacial entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e os países emergentes, que devem se mover para uma economia digital e financeirizada.Com a crônica falta de investimentos dos sistemas públicos de crédito, os agricultores familiares vem sendo cada vez mais empurrados para o sistema financeiro, e portanto, além dos grandes produtores, a inclusão digital dos cerca de 70% a 80% dos estabelecimentos rurais da agricultura familiar no mundo (FAO/2021) é fundamental para dar escala aos serviços financeiros na agricultura. E a regularização da terra como propriedade privada é crucial para que essa possa funcionar como garantia de dívida dos créditos. No Camboja, um programa de titulação de terras em grande escala e a aquisição de microcréditos por corporações financeiras globais durante a última década e meia se combinaram para tornar a população rural do país uma das mais endividadas do mundo. A explosão do microcrédito, apoiado por títulos de terra como garantia aumentou a pobreza e já está contribuindo para uma perda maciça de terras entre os pobres rurais do país[3].Nos últimos anos, as chamadas Agtechs - “as startups do agro” - estão acelerando a implementação da chamada Agricultura 4.0. Junto com a assessoria agrícola baseada em dados oferecem alternativas de conectividade (como bluetooth ou canais livres da TV) e concessão de microcrédito, cuja análise de risco é baseada justamente nos dados coletados e no pacote tecnológico adotado.[4] Cada vez mais, a concessão de empréstimos e seguro rural estão condicionados à adoção deste pacote tecnológico 4.0 e à rastreabilidade das cadeias de suprimento para comprovar que cumprem as condicionantes sociais, ambientais e de governança (critérios ESG), exigidas pelos novos acordos verdes (Green Deals). A argentina Agrofy, maior AgTech da América Latina, já conta com sua própria moeda digital, a AgroPay e sistema de crédito, tendo como acionistas fundos de capital de risco de grandes corporações da cadeia como Yara Growth Ventures, Bunge Ventures, Syngenta Ventures, Cresud e Brasil Agro.Grilagem digitalAs terras públicas e coletivas não podem ser compradas, vendidas ou dadas em garantia de empréstimos. Reclassificá-las é a principal função da integração digital de cadastros com os registros de terra. Por meio dos cadastros, os imóveis rurais têm acesso facilitado a políticas públicas, financiamento e embasam a posterior emissão de títulos individuais de propriedade, o que possibilita que as terras dos povos indígenas, tradicionais e camponeses sejam tomadas por grandes fazendeiros e destes para uma elite cada vez mais transnacionalizada.A extração e disponibilização de dados sobre as terras realmente permite uma melhor “governança”, mas principalmente por parte daqueles que não estão nos territórios e não detém estas informações. O acesso atualizado a dados geoespaciais sobre os usos da terra é crucial para que corporações e investidores financeiros tenham melhores condições de localizar, quantificar oferta e demanda e formar preços sobre as terras, recursos de interesse e a produção. É o que também permite a valoração econômica e negociação de bens comuns até então fora do comércio – como o ar limpo, a vegetação nativa e outros serviços ecossistêmicos - que não incorporam preço como qualquer outra mercadoria. A mensuração e quantificação de toneladas de carbono capturados por bases naturais, como a vegetação nativa e o solo, para emissão de créditos de carbono, por exemplo, depende fundamentalmente desta digitalização da terra.[5]Portanto, trata-se de uma substituição tecnológica com a entrada da terra e dos documentos sobre a terra no ambiente digital, mas também de infraestrutura que possibilita uma nova troca de mãos das terras. A digitalização favorece a transferência do controle sobre as terras e da estrutura de governança sobre elas, principalmente por agentes transnacionais e financeiros. Por outro lado, o risco de expor os esquemas de fraudes e grilagem é o motivo da forte resistência das elites locais em aderir a estes programas por se beneficiarem da precariedade dos sistemas de informação dos Estados. Esta barreira à digitalização tenta ser superada com uma maior flexibilização dos requisitos para a regularização dos imóveis, principalmente através da captura remota de informações por imagens de satélites, a terceirização de sua execução para empresas privadas (muitas vezes controladas por grandes empresários locais), como também por meio da imposição de sigilo ao público sobre as informações geradas.Na Colômbia, o governo do presidente Ivan Duque vem substituindo a verificação presencial pela captura de informações baseadas em fotos aéreas de alta precisão e satélites para realização de seu cadastro multipropósito. Além disso passou a autorizar a execução do cadastro por municípios e por meio de empresas privadas, extinguindo a fiscalização estatal. Tais mudanças abrem margem para que elites locais e o capital estrangeiro consigam influenciar a nova gestão digital dos cadastros, fazendo incluir no mapa e legalizar os cerca de 48% de títulos irregulares no país.[6]No Paraguai, com a política do Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (INDERT) de validar os cadastros digitais do Sistema de Informação e Recursos da Terra (SIRT) que já tenham títulos de registros de imóveis pagos, sem verificar se os mesmos foram forjados nos processos históricos de grilagem e corrupção, as colônias camponesas correm o risco de desaparecer em um processo de contra reforma agrária[7]. O maior número de colônias cadastradas no SIRT para emissão de títulos até 2021 estão nos departamentos com maior presença de capital estrangeiro, como Alto Paraná. Depois de serem apontadas várias inconsistências, os dados do SIRT estão sob sigilo. A alegação é que a questão dapropriedade envolve informação pessoal e não pública.No Brasil, cerca de 30% das florestas públicas (14 milhões de ha) estavam registradas ilegalmente como propriedade particular no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR) até fins de 2020. Como o CAR é autodeclaratório, grileiros desenham no mapa supostos imóveis rurais dentro de florestas públicas em uma nova investida de roubo de terras públicas. A facilidade da grilagem digital vem estimulando os ciclos seguintes de desmatamentos e incêndios, necessários para a apropriação e introdução das terras no mercado.A política de regularização fundiária baseada em cadastros digitais para fundamentar a titulação individual massiva das terras nos países em desenvolvimento - caracterizados pela forte concentração fundiária e pelas informações precárias sobre suas terras públicas e coletivas -, representa alto risco de consolidar a grilagem histórica de terras públicas. Além disso, o processo de digitalização de cadastros e registros vem acelerando a privatização de terras públicas e devolutas, e a incorporação de um maior estoque de terras e recursos de interesse no mercado e nos fluxos financeiros globais.Digitalização da terra e da agricultura a serviço da financeirizaçãoDesde meados do século XX, quando se deu a integração técnica da indústria com a agricultura e maior especialização da produção agrícola em commodites para a exportação, configurou-se o que se chama agronegócio. Esta produção, embora parta da extração em escala de recursos naturais, cada vez mais integra os setores industrial, de serviços e financeiro. A produção agrícola não é apenas de alimentos. É também de ração, fibras, energia, medicamentos, cosméticos e produtos financeiros derivados da terra e das commodities agrícolas - desde os títulos de dívida (bonds) até os créditos de carbono, cada vez mais demandados com o novo pacto social e ecológico que se costura a nível internacional. Com isso, os negócios com alimentos, terras e recursos naturais transformam-se em novas fronteiras de acumulação para diversas cadeias de produção e em favor de agentes estranhos à cadeia industrial agrícola, principalmente do sistema financeiro e investidores institucionais, como fundos de pensão e investimento.A “governança da terra”, portanto, envolve a terra, grandes fazendeiros e os estados nacionais, mas também alcança diversos setores da economia que dependem do acesso a grandes extensões de terras em vários países simultaneamente para atender às diferentes demandas das cadeias de produção globais por commodities, além dos investidores interessados nos produtos financeiros derivados da terra. Trata-se de governança da terra, da agricultura, da energia, do meio ambiente, do clima e de seus mercados, o que é possível por meio da digitalização das informações sobre a terra e território.Nos anos 90, sob o novo paradigma da liberalização dos mercados, atores da cooperação internacional, como Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), passam cada vez mais a deslocar o financiamento das políticas de redistribuição da terra (projetos de colonização e assentamentos de reforma agrária para pacificação dos conflitos no campo), para a construção de Sistemas de Informações de Terras (SIT).[8],[9] Financiamentos são destinados para a “modernização” e padronização das tecnologias e formas de coleta de dados - do manual para digital. Os empréstimos para a construção destes SITs, além de servir para a adoção pelos países de um sistema padronizado para a captura, armazenamento e compartilhamento das informações (como por meio do Sistema LADAM e SOLA/FAO), também foram destinados para a ampliação e atualização constante dos tipos de informações coletadas sobre a terra e outras informações territoriais, para fins múltiplos. Também passam a cobrir a digitalização de documentos em registros públicos, que visam transformar escrituras e títulos de imóveis em registros magnéticos integrados aos cadastros.[10]Na Colômbia, a USAID, por meio da empresa Tetra Tech, com sede na Califórnia, passou a contratar empresas terceirizadas para executar o cadastro multipropósito para a Agencia Nacional de Terras (ANT) em 11 municípios, a fim de acelerar e baratear o processo de digitalização e formalização de direitos de propriedade sobre terras públicas (baldíos). A plataforma Land Node lançada pela empresa para coletar, processar e integrar as informações do cadastro com os registros, já digitalizou 1,5 milhão de registros de terras, os quais ao migrarem do formato impresso para o digital “não geram mais dúvidas quanto sua validade”. A plataforma é um dos casos piloto da iniciativa “Permitindo a análise em escala de cultivos baseada em satélite, da Fundação Bill e Melinda Gates, que pretende criar infraestrutura de coleta padronizada de alta qualidade, armazenamento e atualização constante das informações e seu compartilhamento dentro da cadeia de dados.O acesso às informações digitalizadas mais ou menos padronizadas, tanto dos cadastros quanto dos cartórios de registros de imóveis, permite a consulta de forma rápida e atualizada, de qualquer parte do mundo, da situação legal, do tamanho, das condições ambientais, da produtividade e principalmente da situação de endividamento de determinado imóvel (hipotecas, garantias de dívidas a partir da produção e etc.) para análise quanto à concessão de crédito rural e empréstimos pelo sistema financeiro bancário ou do mercado de capitais.No Brasil, associações de crédito imobiliário e das Fintechs, entidades do mercado financeiro e dos bancos apresentaram proposta de Lei (Medida Provisória nº 1.085/2021) para implementar um sistema eletrônico centralizado que integre as informações dos registros públicos para reduzir custos e prazos para consulta sobre “as garantias (de dívidas) sobre bens móveis e imóveis, trazendo maior eficiência à contratação de crédito e às transações financeiras”. Com as recentes alterações nos marcos legais fundiário, ambiental e do sistema de crédito rural que criam novos mecanismos para aumentar a participação de investidores financeiros internacionais em terras no país, a digitalização do sistema de garantia de dívidas é o próximo passo da agenda para o mercado financeiro.Evidentemente trata-se de substituição tecnológica que estrutura uma “governança” digital capaz de consolidar e ampliar os mecanismos de captura e transferência de terras e recursos de interesse em favor de cadeias globais de valor e do sistema financeiro.Aviso na periferia de Entebbe - Uganda, 2012. Wikimedia Comum - Adam Jones Perfil digital: transformar terra em produto financeiro.Com múltiplas informações sobre a terra, a infraestrutura digital pretende trazer maior padronização, tanto para a composição internacional dos preços de commodities agrícolas, energéticas, ambientais, como também para conferir maior mobilidade e negociabilidade internacional das terras e dos valores sobre as terras. Embora o valor das commodities agrícolas influencie o valor da terra, principalmente nas zonas de investimentos das cadeias globais, o seu preço depende de onde está situada e de suas características, desde a qualidade do solo, topografia, presença de água, de vegetação nativa ou se está desmatada e pronta para a plantação, infraestrutura, até a definição de direitos de propriedade sobre ela e sobre seus recursos naturais.A digitalização da governança da terra seria condição estruturante para se criar uma maior abstração do valor da terra de sua realidade física facilitando a criação de produtos financeiros separados e baseados em um mercado de dados sobre a terra, criado e gestionado por agentes financeiros, como já ocorre com os créditos de carbono, títulos de dívida do agronegócio (bonds) ou os serviços ambientais.[11]Tal como nas redes sociais em que as pessoas “reais” vão criando “perfis de usuários” mais ou menos conectados com a realidade, a depender da qualidade e frequência das informações e fotos compartilhadas, os cadastros digitais de terras pretendem criar um “perfil da terra”. A construção deste “perfil digital da terra” vai depender da qualidade e quantidade da extração e compartilhamento de informações sobre localização, tamanho, qualidade dos solos, histórico de produtividade, vegetação nativa, quantificação de estoque de carbono, disponibilidade de água, prognósticos sobre o clima (como o potencial de chuvas e estiagens da região), assim como sobre a situação legal da terra.Este perfil permitiria a criação de produtos financeiros derivados da terra, com formação de preços que podem acompanhar, mas são independentes do valor da terra como meio de produção. A propriedade sobre estes novos produtos e valores sobre a terra seriam diferentes da propriedade da terra, assim como a propriedade sobre os créditos de carbono, a lavra do minério ou a outorga de água podem ser diferentes da do dono do solo. Tais produtos financeiros, a partir dos dados da terra, dariam sustentação ao excesso de liquidez financeira e multiplicaria os negócios com terras, ampliando o potencial de transações com a criação de novas mercadorias/ativos/derivativos baseados nela, e aproximando a terra em si de um produto financeiro.ConclusãoA captura da terra e recursos naturais pelos fluxos financeiros globais sofre teimosa resistência por sua própria natureza. Seja pelo forte vínculo da terra ao seu contexto físico, que dificulta a padronização de preços necessária para a sua conversão em commodity, seja pela natureza incorpórea e de uso comum das qualidades ambientais, que impõe obstáculo a sua apropriação e comercialização como qualquer outra mercadoria. Além disso, a mudança da propriedade das terras e de sua “governança” é marcada por contradições históricas que envolve um violento processo de disputas entre comunidades, elites locais e transnacionais.A digitalização das informações da terra e recursos naturais pode parecer facilitar a governança dos territórios para uma gestão sustentável do planeta. Contudo, sob a hegemonia do capital financeiro, ela pode levar a um novo processo de roubo de terras, aumentando a concentração fundiária nas mãos dos donos dos dados e das finanças globais, em um renovado processo de cercamentos e geração de escassez dos meios essenciais à reprodução da vida para as maiorias das populações.Fato é que a disponibilidade de variedade alimentar, nutricional e da base medicinal para todas as sociedades advém de territórios biodiversos do mundo que são fruto de uma já existente e resistente “governança” comunitária, que envolve um cuidadoso trabalho intergeracional de construção de conhecimentos, técnicas e tecnologias por povos e comunidades tradicionais. É o fortalecimento do livre uso da biodiversidade por estes modos de vida e redes de conhecimento, fora das cercas da propriedade privada e da captura financeira, o que efetivamente pode viabilizar possibilidades de futuro para a humanidade.[1] Desde princípios da década de 1990, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aprovou cerca de 20 projetos de regularização e administração de terras em 14 países da América Latina e Caribe. Segundo relatório de 2014, poucos trabalhos apontam a correlação entre regularização fundiária e aumento da produtividade agrícola. BID. Proyectos de Regularización y Administración de Tierras, 2014. https://publications.iadb.org/es/publicacion/16799/proyectos-de-regularizacion-y-administracion-de-tierras-evaluacion-comparativa[2] O registro de terras é um processo oficial de documentar os direitos sobre a terra por meio de escrituras. Pode ser feito ao se registrar as transações de terras, que em princípio não provam o direito de propriedade, ou através do registro dos títulos de propriedade (folio real ou matrícula do imóvel), que confere os direitos legais de propriedade sobre a terra.[3] LICADHO and STT, "Collateral damage: Land loss and abuses in Cambodia’s microfinance sector,” 2019: https://www.licadho-cambodia.org/reports/files/228Report_Collateral_Damage_LICADHO_STT_Eng_07082019.pdf; Nathan Green and Maryann Bylander, "The Exclusionary Power of Microfinance," Sociology of Development 7 (2) : 202-229, June 2021: https://doi.org/10.1525/sod.2021.7.2.202[4] As AgTechs oferecem produtos, serviços e informações em tempo real para toda a cadeia do agronegócio, conectando produtores, fornecedoras de insumos, sistema de crédito e seguro rural, processadoras, indústria alimentícia e até varejistas. As AgTechs também iniciam a intermediação dos produtores com o mercado de capitais ao prestar serviços de emissão e registro de títulos de dívida sobre terras e produção, bem como para emissão de ativos do agronegócio, como créditos de carbono e outros serviços ambientais.[5] O conceito de cadastros modernos de terras surge para padronizar o modelo de administração de terras por meio da integração da documentação completa dos direitos de propriedade a um sistema mais amplo de informações territoriais, totalmente coordenado e automatizado. Foi desenvolvido entre 1994 e 1998 pela Federação Internacional de Agrimensores (FIG, na sigla em francês) com apoio da FAO. Christiaan Lemmen et. al. The Land Administration Domain Model. December, 2015. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264837715000174[6] Land Matrix informa 25 negócios de aquisição em larga escala de terras por empresas internacionais, principalmente na região da Orinoquia, como os 25 mil ha capturados pela Cargill e os 50 mil ha da Ingienio Riopaila Castilla S.A ,com sede em Luxemburgo (famoso paraíso fiscal) , muito acima do máximo legal permitido de 1300 ha em média para a região. Deal #3107 in Colombia. Junho de 2019. Disponível em: https://landmatrix.org/deal/3107/#general[7] Em torno de 1 milhão de ha - ou 40% das colônias camponesas no país - estão ocupadas por monocultivos de soja ou pastos para a pecuária, dominadas ilegalmente por cerca de 3% de grandes proprietários de terras que não são beneficiários da reforma agrária. Luis Rojas Villagra e Abel Areco. Las colônias campesinas em el Paraguay. Base-IS, 2017. https://www.baseis.org.py/wp-content/uploads/2018/03/2017Dic_Las-Colonias-del-Indert.pdf[8] A OEA apoia o cadastro e registro da propriedade para sustentar mercados de terras nacionalmente em países como El Salvador, Guatemala e Bolívia, e nos seguintes municípios piloto: Colón (Venezuela), Cojutepeque (El Salvador), Belén (Costa Rica), Azogues e Cuenca (Ecuador). Estas iniciativas estão inseridas no Proyecto MuNet Catastro, financiado pela Agencia Canadense para o Desenvolvimento Internacional (ACDI). “Apoyo OEA al catastro de las Américas”. http://portal.oas.org/Portal/Sector/SAP/DptodeModernizaci%C3%B3ndelEstadoyGobernabilidad/NPA/MuNetCatastro/tabid/839/language/es-CO/default.aspx[9] A USAID apoia projetos para ampliar a governança de terras e recursos naturais em diversos países como na Costa do Marfim, Etiópia, Moçambique, Tanzânia, Libéria, mas também na Ucrânia. Na América Latina, seu principal foco está na Colômbia. “USAID land tenure projects”. https://www.land-links.org/usaid-land-projects/?fwp_projects_status=active&fwp_sort=date_desc.[10] O Sistema Land Administration Domain Model (LADAM), certificado pelo ISO 19152 de 2012, adotado como padrão para digitalização em nível global, cria uma infraestrutura padronizada para integrar dados físicos, espaciais e administrativos sobre a terra dentro de um país e entre as diferentes jurisdições para facilitar a administração internacional dos negócios com terras e recursos, assim como dos registros para contabilidade de créditos de carbono. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) posteriormente lançou o Solutions for Open Land Administration (SOLA), baseado no sistema LADAM, para registro e cadastro informatizado de código aberto que pode ser customizado conforme as leis e políticas de cada país. Atualmente o SOLA é um registro de direitos sobre as terras e um cadastro automatizado de coleta de diversas informações territoriais para gestão de terras.[11] LOHMANN, Larry. “Financialization, Commodification and Carbon: The Contradictions of Neoliberal Climate Policy.” Socialist Register 2012. 85-107. 2012.