Nos últimos cinco anos, os moradores da regência (subdivisão política maior do que uma cidade) de Merauke, na província de Papua, sul da Indonésia, vêm resistindo a um grande projeto agrícola que ameaça a subsistência de mais de 50.000 pessoas. Sua resistência conseguiu retardar o empreendimento de 2,5 milhões de hectares, com concessões vinculadas ao projeto “Propriedades Integradas de Alimentos e Energia de Merauke” (MIFEE, na sigla em inglês). No entanto, recentemente o governo anunciou novos e ambiciosos planos que ameaçam os alimentos e as florestas da maioria indígena Malind, de Merauke. A terra alocada ao projeto – mais de 55% da área total de Merauke – foi escolhida porque o governo a considera “improdutiva” e pouco povoada. O grande projeto agrícola de monocultura está em sintonia com um decreto presidencial de 2008, sobre grandes investimentos em alimentação e agricultura. Respondendo à crise alimentar global da época, o governo considerou o desenvolvimento de grandes plantações como uma forma de alimentar a crescente população da Indonésia, além de contribuir para alimentar o mundo. O MIFEE foi polêmico desde o início, porque vai destruir parte da floresta de Papua, que é a terceira maior floresta tropical do mundo, e ameaça as casas, o suprimento de alimentos e as florestas da comunidade indígena Malind. Embora o objetivo declarado do projeto seja a produção de arroz, milho e outras culturas alimentares destinadas a garantir a autossuficiência nacional e reduzir as importações de alimentos, a maioria das licenças de localização (o primeiro passo para a obtenção de uma concessão) sobre 1,5 milhão de hectares, emitidas para Merauke a partir de 2014, estava relacionada a cultivos que normalmente são exportados. Dezessete plantações de açúcar cobrem 580.000 hectares, oito plantações de dendezeiros ocupam 266 mil hectares, sete plantações industriais de árvores (na maior parte, de acácia e eucalipto) cobrem uma área total de 594.000 hectares, e culturas alimentares, incluindo grandes fazendas de arroz e mandioca, compõem os outros 70.000 hectares (1). A resistência forte em Papua e em toda a Indonésia retardou a expansão do MIFEE. Mas, durante uma visita à Papua, em maio 2015, o presidente recém-eleito, Joko Widodo, mais conhecido como Jokowi, anunciou seus planos para estabelecer a área como centro de produção de arroz do país nos próximos três anos. Ele disse que seria plantado 1,2 milhão de hectares de fazendas de arroz, produzindo 60 milhões de toneladas por ano. Ele também disse que a área alocada para o MIFEE seria ampliada para 4,6 milhões de hectares (2). Esse número anunciado é claramente impossível, já que seria igual à área total da regência de Merauke. Mesmo se observando o número menor, mas ainda impressionante, de 1,2 milhão de hectares para novas fazendas de arroz, não fica claro onde seriam encontradas terras na regência junto a plantações existentes, áreas residenciais da comunidade e o Parque Nacional de Wasur. O anúncio parece ter sido espontâneo. Logo depois, foi realizada uma reunião de acompanhamento entre representantes da administração da regência de Merauke e o ministro da agricultura, Andi Amran Sulaiman, para definir os detalhes. Um jornal local informou que Sulaiman deu às autoridades do governo local apenas três dias para preparar um marco para o empreendimento de 1,2 milhão de hectares de plantações de arroz; 250.000 hectares a ser plantados este ano e outros 250.000 hectares a cada seis meses (3). O governo central disse que daria 7 trilhões de rupias (534 milhões de dólares) por semestre para apoiar os planos. A fabricante de fertilizantes estatal Pupuk Indonesia recebeu a tarefa de levantar o montante inicial, que será usado para limpar e plantar 750 mil hectares de plantações de arroz (4). Outros 250.000 hectares serão administrados pelo Ministério da Agricultura, e mais 200.000 hectares serão oferecidos a empresas privadas. O Presidente Jokowi foi convidado a visitar Merauke pela Medco, atualmente a única empresa a fazer experimentos com agricultura de arroz na área. A empresa – geralmente mais envolvida na produção de petróleo e gás – é uma das pioneiras do MIFEE, mas seu histórico até agora não é bom. Uma de suas subsidiárias envolvidas na extração de madeira, a PT Selaras Inti Semesta, ficou conhecida como uma das piores empresas na região, depois de enganar a comunidade de Zanegi para que entregasse sua floresta por uma indenização mínima. Houve pobreza e conflitos, e nem a própria empresa conseguiu ter lucro, sendo fechada alguns anos mais tarde, mas apenas depois de destruir uma vasta faixa de floresta e deixar os moradores sem floresta e sem renda (5). Outras empresas privadas ainda não se comprometerem publicamente a participar do programa, embora uma reportagem mencione a Wilmar International e a Sinar Mas entre os conglomerados que manifestaram interesse em investir no projeto (6). Ambas as empresas estão entre as maiores do setor de plantação de dendezeiros, tendo a produção de óleo de dendê como sua atividade principal. O arroz é um alimento básico para a população da Indonésia e de toda a Ásia, e é produzido principalmente por pequenos agricultores. De acordo com o levantamento agrícola da Indonésia em 2013, há 14 milhões de famílias de agricultores de arroz no país, mais da metade do total de 25 milhões de famílias rurais. A maioria é de pequenos agricultores que possuem menos de meio hectare de terra (7). Hoje em dia, a pequena agricultura camponesa produz quase todas as 44 milhões de toneladas de arroz cultivadas no país. O cultivo de arroz na escala anunciada pelo presidente da Indonésia só pode ser feito usando grandes monoculturas, com métodos totalmente mecanizados e grande quantidade de agrotóxicos. Se a produção de arroz for centralizada nas mãos de algumas empresas estatais e privadas, o que vai acontecer com os meios de subsistência de milhões de agricultores que plantam arroz no país? A área do projeto MIFEE abrange 160 povoados em Merauke. Para o povo de Papua, isso poderia significar a perda de suas casas e territórios. Também poderia pôr em perigo sua fonte de alimento – o alimento básico na região é o sagu, e não o arroz – e animais da floresta. Um morador do povoado de Zanegi informou que, desde que as plantações começaram a invadir seu território, ficou mais difícil encontrar alimentos. Em 2013, cinco crianças morreram de desnutrição em uma das áreas de concessão da Medco (8). Escrevendo em uma revista local sobre o relançamento do MIFEE por Jokowi, um estudante de Papua escreveu: “Acerca de sua declaração sobre o arroz em Merauke, Jokowi está claramente ignorando o fato de que o povo indígena de Papua consome sagu, e seus meios de subsistência dependem da floresta de sagu. Isso significa que o corte de palmeiras de sagu para garantir a segurança alimentar nacional (do arroz) é um programa que impossibilitará a sobrevivência dos povos indígenas de Merauke, porque vai destruir o seu alimento básico, o sagu”. (9) Apesar de Jokowi ter falado muito sobre soberania alimentar durante a campanha eleitoral, seu plano continua seguindo uma política nacional de alimentação e agricultura implantada de cima para baixo, não deixando espaço para discussões com as comunidades em Merauke, nem com os produtores de arroz da Indonésia em geral, sobre o que eles acreditam que seja necessário para alcançar a soberania alimentar. O argumento retórico do aumento da produção nacional de arroz continua a ser uma simples transferência de terras de povos indígenas a grandes empresas. Com mais de 1,5 milhão de hectares de terras já ocupados por plantações na regência de Merauke, não está claro onde será encontrada a terra de que se fala. Os 1,2 milhão de hectares provavelmente se referem à terra inicialmente destinada ao MIFEE em 2010. Se assim for, está muito fora da realidade imaginar que ela poderia ser plantada dentro de três anos. Para começar, já foram emitidas licenças para plantações de dendezeiros e cana-de-açúcar em praticamente toda a área. Além disso, em muitos lugares, as comunidades indígenas Malinds, que têm direitos sobre terras, declararam claramente que não vão entregar mais terras às corporações. O desenvolvimento inicial do MIFEE criou o caos para as comunidades e o meio ambiente na região. Expandir o projeto em uma escala tão grande só vai criar mais pressão para as comunidades e mais destruição das florestas. Relançar o MIFEE mostra a continuação de décadas de más políticas no interesse de magnatas e empresas multinacionais para controlar terras e recursos naturais. Basta! É hora de denunciar o MIFEE e devolver a terra ao povo Malind. Selwyn Moran, AwasMIFEE, [email protected] Kartini Samon, GRAIN, [email protected] World Rainforest Movement: Boletim Nro 216. (1) Y. L. Franky, “Yayasan Pusaka”, Apresentado no debate sobre o programa de agricultura de Jokowi, em Jacarta, 20 de maio de 2015. Os números são arredondados ao milhar de hectares mais próximo. (2) “Pemerintah Siapkan Merauke Jadi Lumbung Padi Nasional” (Governo prepara Merauke como National Rice Bowl),” Tempo. 11 de maio de 2015.http://www.tempo.co/read/news/2015/05/11/090665231/Pemerintah-Siapkan-Merauke-Jadi-Lumbung-Padi-Nasional (3) Jokowi relaunches MIFEE, wants 1.2 million hectares of new ricefields within 3 years!” AwasMIFEE, 15 de maio de 15, 2015. https://awasmifee.potager.org/?p=1210 (4) Damiana Simanjuntak, “Pupuk Indonesia needs $534m for Merauke Food Estate” Jakart Post, 18 de maio de 2015. http://farmlandgrab.org/24915 (5) Jokowi relaunches MIFEE, wants 1.2 million hectares of new ricefields within 3 years!”, AwasMIFEE, 15 de maio de 2015. https://awasmifee.potager.org/?p=1210 (6) Idem. (7) Censo agrícola nacional de 2013. http://st2013.bps.go.id/dev2/index.php (8) Testemunho de morador de Zanegi em durante o debate sobre o programa de agricultura de Jokowi, Jacarta, 20 de maio de 2015. (9) Sanimala Bastian. Majalah Selangkah. Proklamasi Beras, Soal Penjajahan Pangan Indonésia. 13 de maio de 2015. http://majalahselangkah.com/content/-proklamasi-beras-soal-penjajahan-pangan-indonesia