A América Latina é a região com maior desigualdade na concentração de terras no mundo: 1% dos proprietários rurais concentra 51% das terras agrícolas. Enquanto o conjunto da região representa um já elevado índice de GINIde 0,79, a América do Sul segue com a maior concentração em todo o continente, com índice de 0,85
1 2. O avanço da fronteira agrícola induzida principalmente pela demanda global de soja e carne é o principal fator para o aprofundamento da desigualdade no acesso à terra e pobreza nos países sul americanos, principalmente nas regiões identificadas como
zonas prioritárias de expansão e investimentos do agronegócio.
Segundo avaliação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) do início do século (2000), existiam cerca de 2,8 bilhões de hectares de terras agricultáveis para expansão da fronteira agrícola no mundo, sendo que 80% delas estariam na África Subsaariana e América Latina, em especial em sete principais países Angola, Congo, Sudão e Argentina, Bolívia, Brasil e Colômbia
3. Revisão do estudo de 2012 diminui a extensão das chamadas “zonas de expansão agricultáveis” para 1,4 bilhões de hectares, ao excluir as terras marginais (de baixa qualidade para agricultura), as áreas de proteção florestal e de usos não agrícolas, mas incluiu mais cinco áreas potenciais: em Moçambique, na Tanzânia e Zâmbia na África; Indonésia na Ásia e áreas na Venezuela na América do Sul
4.
No contexto das múltiplas crises pós 2008, a pressão sobre o controle das terras e de recursos de interesse, como a água e biodiversidade, nestas “zonas com reservas de terras” aumentou consideravelmente, seja para uso produtivo ou como ativos financeiros. As chamadas soluções climáticas baseadas na natureza, que enfoca as florestas e ecossistemas como principais estoques de carbono para o combate à crise climática, intensificam ainda mais a disputa por reservas de terra e a especulação imobiliária em todo mundo.
Neste relatório avaliamos a situação das terras nas cinco zonas de expansão e investimento do agronegócio identificadas para a América do Sul: a Orinoquia ou os Llanos Orientais na Colômbia; o Matopiba no Cerrado Brasileiro; e as regiões no curso da rota de escoamento da hidrovia Paraná-Paraguai, os departamentos de Santa Cruz de la Sierra e Beni nos bosques secos chiquitanos na Bolívia, o Chaco Seco Paraguaio e o Chago Argentino. Nas cinco zonas de expansão pode-se identificar:
Alta concentração das melhores terras agricultáveis em imóveis de grande extensão, em geral acima de 2 mil hectares. Mesmo na Bolívia que impõe limites de até 5000 há por titular, na zona de expansão de Santa Cruz e Beni houve legalização e titulação de áreas com até 6000 ha. Na região da Orinoquia na Colômbia, a média chega a 10 mil há por imóvel, enquanto 36% da superfície argentina é controlada por imóveis entre 10 e 20 mil há e 40% das terras no Paraguai são controlados por 600 imóveis acima de 10 mil há. No Cerrado Brasileiro surgem, pela primeira vez, propriedades maiores do que 1 milhão de há com soja colhida no Mato Grosso e Bahia;
Ocupação majoritária destas terras por monocultivos de soja ou pastos para a pecuária para exportação de commodities e aumento expressivo do desmatamentoda vegetação nativa fruto da acelerada conversão do uso do solo pelo avanço da fronteira agrícola. Dos 16,5 milhões de há convertidos pela agropecuária no Brasil nos últimos 10 anos, 12 milhões de ha foi com soja. Destaca-se o recorde de desmatamento na Bolívia, com 5 milhões de há apenas em 2019, enquanto 80% do Chaco argentino foi convertido em terra para pastagens e produção agrícola;
Aumento do controle das terras (por aquisição ou contrato) e da infraestrutura logística para a exportação por grupos econômicos estrangeiros, principalmente as tradings do setor, com destaque para o controle de terminais portuários estratégicos pela Cargill e COFCO em todas estas zonas de expansão e a intensa investida em aquisição das terras do Matopiba por fundos de pensão e investimento. A estrangeirização do controle sobre terras é especialmente relevante no Paraguai, estima- se que 35% de suas terras esteja sob controle direto ou indireto estrangeiro, e na zona de expansão de Santa Cruz de la Sierra, com 60% das terras mais produtivas sob controle de corporações internacionais do setor.
Processos em curso de digitalização da governança da terra para resolver direitos de propriedade por meio de cadastros com o georreferenciamento das áreas, vem negligenciando os territórios coletivos em todos os países analisados de forma a criar as bases para liberação de terras para o mercado de terras;
Massiva titulação individual da propriedade privada e suspensão dos processos de titulação coletiva e de reformação agrária, inclusive na Bolívia, país mais avançado na garantia de direitos territoriais coletivos na América Latina. Na região de Santa Cruz, 1,8 milhões de há das melhores terras foram excluídas da reforma agrária pelo cadastro de terras e posteriormente titulados em favor de empresas agropecuárias;
Leis e políticas específicas para atração de investimentos do mercado de capitais em terras, infraestrutura logística e nas cadeias de valor do agronegócio, tendo como lastro patrimônios rurais criados especificamente para garantia de dívidas, como a terra (ou frações dela), a safra futura ou mesmo os “serviços ambientais”. Ressalta-se as Zonas de Investimento para o Desenvolvimento Rural, Econômico e Social (ZIDREs) na Colômbia, beneficiárias privilegiadas de terras e políticas de crédito, e a transformação dos títulos do agronegócio no Brasil em ativos mobiliários, inclusive emitidos em moeda estrangeira, e gestionados pelo mercado financeiro com isenção de impostos em suas transações.
Em todos os países analisados, os cadastros com georreferenciamento passam a ser requisito tanto do processo de regularização fundiária, como para acesso a outras políticas públicas e de crédito no sistema financeiro pelo imóvel rural. Há um massivo investimento do Banco Mundial para a digitalização da governança da terra e dos recursos naturais sobre ela, como os U$ 45,5 milhões de dólares específicos para inscrição de imóveis rurais particulares do Cerrado brasileiro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou os U$ 100 milhões de dólares para o cadastro multipropósito na Colômbia.
Embora o aprimoramento na tecnologia de localização e mensuração dos limites dos imóveis – chamada de digitalização da governança da terra - possa contribuir para o processo de saneamento/identificação das terras públicas, devolutas, coletivas/comunitárias e particulares, de modo a reaver propriedades em situação ilegal, a realização do cadastro por cada posseiro/proprietário sem verificação pelo estado, acaba por validar o histórico processo de grilagem/acaparamento de terras. Pode-se verificar nas cinco principais zonas de expansão na América do Sul objeto deste relatório, uma massiva titulação individual em favor dos que tem acesso primeiro à precisão digital (GPS), sobre terras públicas, devolutas e sobre terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades tradicionais, em verdadeiro land grabbing digital.
Mesmo na Argentina e Paraguai que exigem a integração destes cadastros com as informações dos registros de imóveis antes de conferir direitos de propriedade sobre a terra, o enfoque no título e na precisão da mensuração por GPS vem substituindo o critério da verificação do cumprimento da função social e ambiental e da natureza da ocupação (se fruto de grilagem ou não). Portanto, pode-se observar que, no geral, os cadastros vêm sendo utilizados como novo fundamento de segurança jurídica da propriedade, conferindo validade a títulos podres, baseados em invasões de terras públicas e de territórios de povos e comunidades tradicionais, como no caso do cadastro SIRT com as terras mal habidas no Paraguai e o CAT-SAN que conferiu prioridade de registro em cartório das melhoras terras agricultáveis sob conflito de Santa Cruz de la Sierra para empresas agropecuárias. O Brasil atualmente, por Decreto, permite a regularização fundiária sobre terras públicas de até 1500 ha a partir do CAR e de informações prestadas pelo próprio requerente.
Mulheres da organização OMMI, da comunidade El Estribo. Paraguai. Foto: Nicolás Avellaneda - Fundação Plurales
Há uma clara prioridade no georrefenciamento sobre as zonas de expansão do agronegócio e quase que exclusivamente sobre imóveis rurais particulares, encobrindo, no todo ou em parte, os territórios coletivos e assentamentos de reforma agrária em sua gestão coletiva da terra. Mesmo com a inscrição de territórios coletivos, instituições públicas e bancárias vêm exigindo o cadastro como imóvel rural particular, o que gera a sobreposição de vários cadastros individuais sobre territórios coletivos, ou mesmo um apagamento destes territórios do mapa. Esta pressão pelo cadastro como imóvel particular se deve porque as terras públicas, os territórios coletivos/comunitários e os assentamentos de reforma agrária (por tempo determinado) são inalienáveis e não podem ser dados em garantia de dívida, representando limites ao mercado de terras imobiliários e ao mercado mobiliário dos ativos financeiros baseados em patrimônios rurais sobre a propriedade privada.
Com esse redesenho digital do uso e ocupação da terra focado em imóveis individuais particulares, e a subsequente regularização fundiária pautada na emissão de títulos individuais para a consolidação dos direitos de propriedade, pavimenta-se a inserção de milhões de hectares no mercado de terras, nas cadeias globais de valor, inclusive como se fossem “sustentáveis”, e no mercado de capitais, já que passa a ser possível sua venda e execução por dívida.
É sobre estes territórios virtuais regularizados pelos cadastros que os principais agentes que organizam a cadeia de valor do agronegócio começam a vender a ideia das
cadeias globais sustentáveis, cuja produção seria livre de desmatamento
(free deforestation)5. Com o apagamento dos crimes de invasão de terras públicas e desmatamento (como o caso do CAR no Brasil), a partir da inscrição nos cadastros, reedita-se a origem, agora “legal e verde”, dos produtos da cadeia de valor -soja e carne, principalmente - que passam a ser validos como “sustentáveis” pela nova infraestrutura tecnológica do sistema de verificação e reportação dos sistemas de rastreabilidade destas cadeias longas típicas das commodities (tecnologia blockchain)
6. Por outro lado, o que
não está no mapa passa a não estar no mundo, e as mesmas imagens de satélite que garantem a conformidade fundiária e ambiental dos imóveis particulares, tornam-se sistemas de vigilância e criminalização de povos e comunidades “apagados” em seus próprios territórios, cujos modos de vida passam a ser crimes contra propriedade.
Além, da reedição “verde” do mercado imobiliário e da cadeia de commodities, autoriza-se a emissão de novos títulos financeiros sobre patrimônios rurais - como a propriedade sobre a terra e serviços ambientais (green bonds)-, que pretendem conferir lastro para a liquidez do mercado mobiliário de capitais, assim como alavancar financiamentos para a produção e infraestrutura para a cadeia de valor do agronegócio. Imóveis com registro de propriedade e com georrefereciamento no CAR e/ou no SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) no Brasil, por exemplo, representam o novo lastro para emissão de títulos financeiros sobre a terra e recursos naturais, como a Cota de Reserva Ambiental (CRA) sobre 1 há de vegetação nativa ou os títulos do agronegócio que têm a terra, a safra futura ou serviços ambientais como garantia de dívida por empréstimos de investidores, principalmente estrangeiros.
Deste modo, a digitalização da governança da terra e recursos naturais através do vínculo entre cadastro georreferenciado e o registro de imóveis passa a ser o novo lastro, como também o meio para a rápida efetivação das transações de valores – inclusive “sustentáveis” dos negócios a partir das terras, nesta fase digital da economia financeirizada. Está em curso uma concentração, sem precedentes, da terra, dos recursos naturais e do sistema agroalimentar, não mais por agronegócios, mas por poucos atores do mercado de capitais, aprofundando ainda mais a produção de escassez intrínseca ao sistema corporativo de produção agroalimentar.
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Não se trata apenas de um redesenho digital da superfície, mas uma reedição por imagens “com precisão tecnológica” da história de paisagens, territórios, agrobiodiversidade e de seus povos. Via de regra, os territórios dos povos “apagados”, identificados como “vazios” demográficos” ou propriedades privadas, estão justamente nas zonas prioritárias de expansão e investimento do agronegócio. Palcos contemporâneos não apenas de disputa fundiária, mas pelo direito de existência a outros modos de vida, outros tipos de desenvolvimento e possibilidades de futuro fora das formas da propriedade privada e do mercado financeiro.
Brasil – Matopiba
A FAO já no início do século apontou o Cerrado como
a mais importante zona de expansão agrícola mundial deste século (FAO/2000)7. Na década seguinte, o Matopiba passa a ser definido pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos como uma das
“ mais recente fronteira agrícolas no Brasil” (USDA/2012)
8. Atualmente o Cerrado responde por aproximadamente 45% da área agropecuária nacional, produzindo 52% da soja do país, tendo grande parte de suas terras e infraestrutura logística organizada por conglomerados agroindustriais estrangeiros, como como o ABCD do agro, assim como a chinesa Cofco Agri, até atores exógenos ao setor, como fundos de investimentos estrangeiros, a exemplo do
Teachers Insurance and Annuity Association of America- TIAA e Harvard Endowment (GRAIN, 2020); Brookfield Asset Management, Cresud Mitsui, Mitsubishi, Valiance Capital, Private Equity Patria Investimentos/Blackstone, eentre outros. (CHAIN REACTION RESEARCH, 2018)
9 10 11 12 13 14 15 16 .
Está em curso verdadeira financeirização da terra, recursos naturais e do sistema agroalimentar no país, principalmente por meio da estruturação de um sistema de crédito financiado pelo mercado de capitais e não mais dirigido pelo Estado, o que demanda uma cada vez maior liberação da terra como propriedade privada, principal garantia dos financiamentos e uma desburocratização dos processos de regularização fundiária, para conferir maior celeridade nos processos de titulação
18. A digitalização da terra é crucial para isso.
Comunidade do Cajueiro (MA) no Brasil lutando por seu direito a existir teve suas casas destruídas para a construção do porto privado na região pela construtora WTorre em associação com a Corporação estatal chinesa CCC -Communications Construction Company. Foto: Vias de Fato@Midia Ninja
É evidente o apagamento dos territórios coletivos e o redesenho digital da terra como propriedade privada por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR): até março de 2019, apenas 6 % do território cadastrável ou 34,5 milhões de hectares foram declarados como terras indígenas, territórios quilombolas e territórios de povos e comunidades tradicionais no Sistema de Informações do CAR (SICAR), embora dados oficiais indiquem que apenas de territórios indígenas há 117 milhões de ha ou 13,7% do território nacional (FUNAI/2020). 19 20. Por outro lado, embora as bases de dados oficiais do governo apontem que cerca de 43% do território do país seja constituído por áreas privadas, foram declarados como imóvel rural particular no cadastro de terra do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), 91% do território nacional, aumento de 1/3 de 2016 a 2018, desde a aprovação da chamada “Lei da grilagem”. 21
Colômbia – Orinoquía
Em 2016 a Colômbia criou a Zona de Interesse de Desenvolvimento Rural, Econômico e Social (ZIDRES), para permitir a destinação de terras
badías/públicas de qualquer tamanho
por contrato/concessão por tempo indeterminado em favor da agroindústria, rompendo com a preferência de destinação das terras públicas aos mais vulneráveis do campo, indígenas, afrodescendentes e vítimas do conflito. Além da concessão subsidiada de terras, as atividades instaladas nas ZIDRES passam a ser as principais destinatárias de benefícios de fomento e financiamento com linhas de créditos privilegiadas.
23Foto: Bovinos nos "llanos". Crédito: ©2011CIAT/NeilPalmer @FlickrDos cerca de 7,2 milhões de hectares (6,2% do território) autorizados para o estabelecimento das ZIDRES, 5,5 milhões de ha estão nos Llanos orientais ou Orinoquia (76,3%), sendo 4,8 milhões nos departamentos de Vichada (66%) e 2.3 milhões em Meta (32%), principais departamentos da ecorregião, acabando por legalizar um verdadeiro mercado de terras públicas – dos badíos de la Nación- na região.24 A acumulação irregular de baldios é especialmente intensa na Orinoquia, principalmente na região de Altillanura, considerada a última fronteira agrícola da Colômbia, e com a maior concentração de terras do país, com imóveis em média acima de 10 mil hectares. 25
A inscrição destas extensas áreas de baldíos como imóveis particulares no cadastro multipropósito, - sistema eletrônico de informações e georeferenciamento das terras na Colombia -, dá as bases para a consolidação da propriedade privada sobre terras públicas e sua inserção no mercado de terras. Embora o cadastro não exija documentação de registro da propriedade, e portanto, não possa fundamentar emissão de título que confira direito de propriedade sobre a terra, o Banco Mundial aposta na integração dos sistemas de cadastro e registro de terras, com financiamento de U$ 100 milhões, através do BIRD, tendo como meta a digitalização de 100% do território do país, com a emissão de 67 mil títulos abrangendo 1,5 milhões de hectares até 2025.
Argentina - Chaco
A Argentina também vem integrando informações territoriais com base na tecnologia de precisão geoespacial, mas diferente de Brasil e Colômbia, o Cadastro espacial já nasce vinculado ao sistema de registro de imóveis para a emissão de títulos de direitos de propriedade. Embora exija a conformidade entre as informações do cadastro e a documentação do registro do imóvel, não há uma norma geral para verificação da procedência das origens do título, da natureza da posse e do cumprimento da função social da terra antes da validação dos títulos. Cada província define seu procedimento para regularização fundiária e emissão do
certificado cadastral, documento que constitui, modifica ou transmite direitos reais sobre um imóvel no país
27. O Programa Nacional de Titulação Rural (ProntAR) permite inclusive a regularização de propriedade privada sobre terras públicas em favor de
cooperativas e consórcios agropecuários que tenham posse mansa e pacífica, contínua e ininterrupta.
Argentina, Gran Chaco, Salta; Menina Wichi pastora de cabras. Foto : WestEnd61
De um lado, aqueles que não tenham acesso à tecnologia de georreferenciamento, não terão direito a emissão do certificado cadastral e do título, e de outro, a integração da informação geoespacial sem a devida análise documental do registo e da natureza da posse, pode acabar validando a histórica grilagem de terras públicas, inclusive em favor de estrangeiros, tendo em vista que desregulação dos limites de acesso à terras por estrangeiros empreendidos desde 2016 pelo então governo Macri28. Até 2017 foram titulados 40.216,5 ha beneficiando 1.040 produtores, em regra, vinculados a produção pecuária, sem esclarecer se pequenos, médios ou grandes, pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras.
A titulação da propriedade é fundamental para o processo de financeirização do sistema de crédito rural na Argentina, alavancado principalmente após os anos 2000 pela constituição de fideicomissos por fundos de investimentos, passando a deter a terra como garantia, assim como devido à emissão de títulos sobre a produção, como os
warrants, emitidos inclusive em dólar e apenas para atores estrangeiros
30 31. Entre 2004 e 2008, a constituição de propriedades temporárias fiduciárias no setor rural aumentou 271%, e segundo o Censo de 2018, 208 fideicomissos detinham 235 mil hectares no país.
32 33 A translatinização de megaempresas argentinas como Los Grobo, foi impulsionada pela constituição de fideicomissos. Já os
warrants com garantias financeiras representaram 87% das emissões de certificados em 2018, representando cerca de U$ 806 milhões de dólares.
Paraguai- Chaco
Constantes incentivos estatais vem financiando um preço atrativo para as terras no Chaco Paraguaio, seja através de políticas de crédito, como por meio da facilitação da regularização subsidiada das invasões ilegais de terras públicas. Dos 7.8 milhões de hectares de terras públicas/fiscais ou compradas com orçamento público, entre 1954 e 2003, outorgadas de forma ilegal no país as chamadas terras “mal havidas”, 80% está na região do Chaco.
Foram destinados, em média, 4.600 há por pessoa, principalmente para políticos, elites locais e militares
34 .
Em 2014 foi implementado o
Sistema de Informação de Recursos da Terra (SIRT), com o apoio da ONU/PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), para identificar a situação geográfica e registral das terras fiscais concedidas pelo estado e atualizar a situação das 1.011 colônias campesinas da região oriental pelo INDERT (Instituto de Desenvolvimento Rural e da Terra), a fim de iniciar os procedimentos de reversão das terras “mal havidas”, segundo art. 47 do Estatuto Agrário. Embora o INDERT devesse verificar o origem do título, o tipo de ocupação e a função socioambiental e se preenche os critérios de beneficiários da reforma agrária para validar o registro junto ao cadastro georreferenciado, o Instituto passou a considerar os títulos já pagos, mesmo irregulares, como legítimos, com a mera inscrição no SIRT
36.
Construção de uma nova pista de pouso pavimentada no aeródromo Infante Rivarola, com acesso a partir da Rota Transchaco. Foto: MOPC - Ministério de Obras Públicas e Comunicações do Paraguai
Deste modo, o cadastramento vem servindo para encobrir e legitimar títulos podres e posses ilegais nas colônias, em verdadeira grilagem digital das “terras mal habidas”.
37Agora tituladas e reconhecidas, as
terras habidas “legalmente” pela maquiagem digital, abre o mercado de terras e passa a lastrear os patrimônios rurais em garantia de dívida em prol dos investimentos de atores financeiros estrangeiros, que historicamente dominam a cadeia de valor do agronegócio no Paraguai
38. É do mercado de capitais lastreado em patrimônios rurais que os agronegócios, financeirizados, pretendem transformar o Chaco em zona de expansão e investimento, como por meio da instalação de em um hub de transporte internacional, de modo a triplicar para cerca de US$ 5 bilhões o valor anual das commodities transportadas pela rodovia Transchaco (Rota número 9), a principal via de escoamento da produção da região para os terminais portuários na Hidrovia Paraguai – Paraná.
Bolívia – Chiquitinia (Santa Cruz e Beni)
Embora os números brutos apontem para uma maior extensão de terras destinadas aos povos indígenas e/ou titulações coletivas e comunitárias, cerca de 70% das melhores terras agricultáveis do país, foram reservadas e tituladas em favor de Empresas Agropecuárias na região da Chiquitania para os agronegócios, especialmente internacionais.
40
No processo de saneamento das terras no país,
zonas prioritárias foram identificadas ainda durante a elaboração do Projeto Nacional de Administração de Terras financiado pelo Banco Mundial (1992-1995), associado a outro projeto do Banco “
Proyecto de Tierras Bajas del Este”, para garantir a segurança jurídica da propriedade sobre as terras com melhor potencial agrícola do país na construção de um espaço econômico para produção comercial de soja para exportação.
42 Tais zonas prioritárias eram compostas de áreas sob conflito quanto a posse e propriedade, que deveriam realizar
o Saneamento Integrado ao Cadastro (CAT-SAN), modalidade que combina a inscrição do imóvel em registros públicos com a inscrição em um cadastro legal com informações georreferenciadas da propriedade, passando a conferir
prioridade sobre os direitos de propriedade em caso de sobreposição de títulos sobre a mesma área
44. Dos 2,5 milhões de ha identificados como zonas prioritárias, 1,8 milhões de ha estava em Santa Cruz de la Sierra, segundo empresa INYPSA contratada pelo Banco Mundial
45.
Área afetada por incêndios florestais que destruíram hectares de floresta em Robore, Bolívia, 19 de agosto de 2019. Foto : Departamento de Santa Cruz via REUTERS
Como decorrência da execução deste programa, observou-se uma elevação das titulações às médias propriedades e empresas agropecuárias, especialmente estrangeiras. Estima-se que transacionais como a ADM, Cargill, Bunge e atores financeiros, como o grupo de investimento Venezuelano Gravetal controlem direta ou indiretamente (agricultura de contrato) cerca de 60% das terras mais produtivas de Santa Cruz de la Sierra. 46 47 48
A titulação individual da propriedade foi essencial para inserção das terras agricultáveis no mercado de terras, tendo em vista que as TCOs (Terras Comunitárias de Origem) e a propriedade comunitária são áreas fora do comercio, que não podem ser vendidas ou dadas em garantia, assim como para permitir o acesso das terras por companhias estrangeiras. Como é proibida a venda ou cessão de terras públicas à estrangeiros na Bolívia, o programa de digitalização e titulação privada individual das terras fiscais (seja pequenas, médias ou grandes) foi o primeiro passo para tornar possível a entrega, seja por meio da venda ou contrato, das terras ao capital estrangeiro, e portanto, constituir a zona especial de investimento do agronegócio sobre a Chiquitania.
RESISTÊNCIAS DOS TERRITÓRIOS:
Reforma agrária integral e popular e territórios coletivos contra a mercantilização e financeirização da terra, dos recursos naturais e do sistema agroalimentar. Os territórios coletivos comunitários, os assentamentos de reforma agrária (por tempo determinado, em regra acima de 10 anos) e as terras públicas são terras fora do mercado imobiliário, como mercadoria, e mobiliário, como ativo no mercado financeiro. Como não podem ser vendidos, arrendados (salvo exceções) ou dados em garantia para execução por dívida por instituições financeiras são territórios de resistência ao processo de mercantilização e financeirização da terra, dos recursos e do sistema alimentar.
Acesso à terra não é regularização fundiária. Há previsão constitucional e legal de destinação prioritária das terras públicas para os territórios coletivos de povos indígenas e comunidades tradicionais e para os beneficiários de assentamentos de reforma agrária em todos os países onde estão inseridas estas zonas de expansão do agronegócio.Antes de qualquer programa de regularização fundiária pautado na emissão de títulos de propriedade individual, é obrigação dos estados e das agências multilaterais de financiamento, como o Banco Mundial, executar a identificação e destinação das terras públicas e das terras particulares reavidas por irregularidade para povos indígenas, comunidades afrodescendentes, comunidades tradicionais e para o público beneficiário da reforma agrária.
Digitalização da governança da terra não pode gerar direitos de propriedade. Cadastros georreferenciados não podem ser critério legal para fundamentar a legalidade de títulos registrados em cartório ou das posses sobre as terras, sob pena de o processo de digitalização da terra se constituir em verdadeiro redesenho da superfície com foco na propriedade privada, em um massivo landgrabbin digital.
Antes de cadastros e títulos, deve-se focar na construção de sistemas vinculantes de verificação e monitoramento constante do cumprimento da função social e ambiental da terra.É a verificação e monitoramento do cumprimento da função social e ambiental da terra, da origem da posse (não violenta) e da validade dos títulos registrados com levantamento do histórico da cadeia dominial, o que dá condições de proteção da propriedade pública ou privada, individual ou coletiva, em qualquer Estado de direito, seja liberal ou social.
Os cadastros digitais de terras, não podem ser requisitos para o acesso a políticas públicas e de crédito rural, sob pena de excluir do acesso à terra aqueles que não tenham acesso, não possam pagar pelo georreferenciamento ou mesmo se inscrever como território coletivo. O massivo investimento do Banco Mundial para a inscrição das terras nestes cadastros como imóveis particulares –seja de pequenos, médios ou grandes – vem contribuindo para o apagamento e inserção dos territórios coletivos no mercado de terras.
A propriedade privada sobre a terra não significa propriedade sobre os recursos naturais, chamados “serviços ambientais”. As florestas, vegetação nativa, a água, biodiversidade suas funções ambientais não integram o patrimônio rural do proprietário, já que em todas as constituições democráticas ocidentais as qualidades ambientais compõem o núcleo dos direitos humanos vinculados à dignidade humana. Isto quer dizer que são bens não patrimoniais, nem públicos nem privados, protegidos pelo regime jurídico dos bens comuns que não podem ser apropriados (nem pelos entes de estado) e vendidos no mercado como qualquer outra mercadoria. Tais qualidades ambientais não pertencem a ninguém, são destinadas a todos das presentes e futuras gerações, e principalmente aos povos e comunidades tradicionais que os mantém preservados e que deles sobrevivem há milhares de anos. A apropriação destes recursos pelo titular da terra ou do título financeiro significa a exclusão de todos os outros, inclusive das futuras gerações, do acesso equitativo aos meios de produzir a vida, colocando em cheque as próprias condições de reprodução da vida no planeta.
Financeirização gera mais escassez. Proibição de emissão de ativos financeiros ou valores mobiliários sobre a propriedade da terra (ou frações dela), e sobre bens comuns que não compõem patrimônios rurais, como os serviços ambientais (vegetação nativa, água, biodiversidade. A transformação da terra como valor mobiliário a ser gestionado no mercado de capitais, pretende dar liquidez ao mercado financeiro, colocando a terra (ou frações dela) e seus recursos, como a safra e os chamados “serviços ambientais” nas mãos de poucos agentes financeiros, que passam a controlar e especular sobre os preços das terras, de mercados de carbono e biodiversidade e com as commodities agrícolas, colocando em perigo todo sistema alimentar.
Já a aposta de alavancar financiamento para a gestão ambiental por meio do mercado financeiro através da emissão de ativos ambientais (os green bonds), acaba por induzir ainda maior escassez dos bens ambientais que se quer proteger. Dentro da lógica da oferta e procura e das especulações típicas dos ativos financeiros, quanto mais escassa uma mercadoria, maior o seu valor de mercado. Em uma economia extrativa que produz escassez de florestas e vegetação nativa por meio de altas taxas de desmatamentos e escassez de ar puro e regulação climática, com a crescente emissão de gases efeito estufa, ativos verdes que representam tais recursos naturais escassos serão cada vez mais valorizados nas dinâmicas do mercado financeiro. Quanto maior o lucro da economia marrom do agronegócio e do petróleo, maior o lucro da economia verde financeirizada, portanto, pragmaticamente ineficaz para gestão do meio ambiente. A apropriação e a financeirização da terra e recursos naturais são mecanismos indutores de maior escassez.
É a gestão coletiva dos territórios biodiversos pelos povos e comunidades tradicionais e camponesas do mundo há cerca de 12 mil anos o que vem garantindo a preservação ambiental e fornecimento de diversidade alimentar e nutricional para toda a humanidade. Portanto, as reais alternativas, estão em manter o essencial, fora das formas da propriedade e dos mercados.
Este relatório contém:
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Agradecimentos: Junior Aleixo, pesquisador doutorando pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/GEMAP/UFFRJ), que colaborou na coleta de dados e revisão do relatório; Eduardo Barcelos, professor do Instituto Federal Baiano (IFBAIANO), responsável pela construção da cartografia/mapas constantes do relatório.
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1O índice de GINI mede o grau de desigualdade na distribuição do acesso a terra entre proprietários/possuidores em uma região e período de tempo determinados. O zero indica a máxima igualdade de acesso a terras e o 1 a máxima desigualdade. Deste modo, o índice mensura a desigualdade relativa entre aqueles que detém a terra e não sua concentração, excluindo sem terras, por exemplo. Apenas recentemente os Censos dos países começaram a incluir categorias de posse e propriedade coletiva da terra, como os territórios indígenas e de comunidades afrodescendentes e tradicionais, o que também vem mascarando os dados censitários.