Atualização 1º de junho de 2020
Desde a publicação, em 30 de março de 2020, de nosso artigo sobre a origem da Covid-19, fortaleceu-se o consenso científico de que a doença (provocada pelo vírus SARS-CoV-2) não surgiu no mercado de molhados de Huanan, em Wuhan, apesar de essa ter sido uma versão amplamente divulgada pela mídia e até mesmo por muitas publicações científicas e governamentais. No dia 23 de maio, a diretora do Instituto de Virologia de Wuhan declarou que o primeiro caso de contaminação humana pelo SARS-CoV-2 não surgiu nesse mercado de rua. A afirmação foi reiterada pelo principal epidemiologista da China, o diretor do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças, Gao Fu. “No fim das contas, o próprio mercado foi uma das vítimas [do surto]”, afirmou o especialista.
Um estudo publicado por cientistas da China e dos Estados Unidos em 25 de maio de 2020 também concluiu que o vírus não surgiu no mercado de Huanan. Assim como outras investigações científicas recentes que analisaram as amostras iniciais coletadas na China, a pesquisa estabeleceu que diversos tipos do vírus já circulavam no país havia algum tempo, e que a transmissão inicial de animais para seres humanos aconteceu antes do surto no mercado de Huanan. A cepa que infectou a população na feira de Wuhan foi de um tipo transmissível que, provavelmente, evoluiu no corpo de seres humanos a partir de uma cepa inicial que teria saltado de animais. Mas ainda não se sabe como esse primeiro salto aconteceu.
“Esse vírus surgiu a partir do salto de um animal, talvez de um morcego, para seres humanos, talvez por… outro animal, talvez por animais de criação. Ainda não temos os dados necessários para saber onde e como isso aconteceu”, afirmou Colin Carlson, professor da Universidade de Georgetown, em entrevista ao LiveScience. “Não vi nada que me dê a impressão, como pesquisador que investiga zoonoses, de que o mercado [de Huanan] seja uma opção provável [para a origem do surto]”, explicou.
Nas pesquisas realizadas com animais silvestres e domésticos na China e nos estudos de susceptibilidade de animais à Covid-19, não apareceu nenhum candidato óbvio a hospedeiro intermediário entre morcegos e seres humanos — etapa que muitos cientistas acreditam ter sido necessária na evolução do vírus. Em nosso artigo anterior, argumentamos que seria importante investigar os porcos nesse sentido. Desde então, dois estudos que submeteram animais da espécie a doses de SARS-CoV-2 concluíram que não houve infecção pela doença nos indivíduos pesquisados. No entanto, seria importante interpretar esses estudos com cautela, pois não foram conduzidos com a cepa inicial da doença que provavelmente fez o salto de animais para seres humanos. É preciso continuar as pesquisas com a população de porcos e outras espécies criadas de forma intensiva na China.
Nós mantemos nossa convicção de que a criação industrial de animais deve ser tratada como uma das fontes mais importantes de novos patógenos perigosos, incluindo diferentes tipos de coronavírus, além do desmatamento e da nossa invasão cada vez maior dos habitats de morcegos e outros animais silvestres. Essas ameaças são destacadas em uma pesquisa científica publicada recentemente com atualizações referentes a um período de três anos a respeito do surgimento de novos tipos de coronavírus entéricos em porcos na China (conhecidos genericamente pela sigla SeACoV). Um deles, chamado de SADS, é citado em nosso artigo e também em nosso relatório recente sobre a peste suína africana. O levantamento apontou a ocorrência de diversos surtos de novos vírus SeACoV na indústria suína no período, e também do possível envolvimento de diversas cepas nesses casos. O estudo alerta que a circulação desses vírus, que provavelmente evoluem pela transmissão entre morcegos e porcos (e, talvez, ratos), representa um risco significativo para o surgimento de novos coronavírus com potencial pandêmico em seres humanos.
Há um conjunto crescente de evidências que apontam para uma história diferente sobre a origem do Covid-19. Sabemos agora que nenhum dos animais testados no mercado de frutos do mar de Wuhan deu positivo e cerca de um terço do conjunto inicial de casos relatados em pessoas em Wuhan desde o início de dezembro de 2019 não tinha nenhuma conexão com o mercado de frutos do mar, incluindo o primeiro caso relatado3 4. E também sabemos agora, graças ao vazamento de um relatório oficial chinês para o jornal South China Morning Post que o primeiro caso conhecido de Covid-19 em Hubei foi detectado em meados de novembro, semanas antes que o conjunto de casos ligados ao mercado de frutos do mar de Wuhan fosse relatado5.
Na semana passada, cientistas do Instituto de pesquisas Scripps publicaram uma análise de sequenciamento genômico do vírus SARS-CoV-2 na revista Nature que levanta ainda mais dúvidas sobre a possibilidade da SARS-CoV-2 ter tido origem no mercado de frutos do mar de Wuhan6.
O segundo cenário se enquadra nos anteriores surtos de coronavírus, em que os humanos contraíram coronavírus mortais após exposição direta à civeta (animal selvagem asiático), no caso da SARS, e a camelos, no caso da MERS. Neste cenário, o SARS-CoV-2 teria evoluído para a sua forma atual num hospedeiro animal antes de ser transferido para humanos. Tal como muitos outros cientistas, os pesquisadores do Scripps acreditam ser muito provável que a transmissão inicial tenha ocorrido de morcegos para um animal hospedeiro intermediário, onde o vírus então evoluiu para a sua forma atual.
E quais animais se encaixam nestes critérios?
Outro estudo recentemente publicado identifica os animais hospedeiros intermediários mais prováveis para o SARS-CoV-2, baseado na sua presença em Wuhan e no fato de terem uma ACE2 semelhante à humana que permita a ligação do SARS-CoV-2. Os animais identificados no estudo foram: civetas, porcos, pangolins, gatos, vacas, búfalos, cabras, ovelhas e pombos8.
Primeiro, porque porcos e humanos têm sistemas imunológicos muito semelhantes, facilitando o cruzamento do vírus entre as duas espécies, como aconteceu com o surto do vírus Nipah na Malásia em 199810. De fato, apenas três anos antes do início do surto de Covid-19, dezenas de milhares de porcos em quatro fazendas industriais no município de Qingyuan em Guangdong, a menos de 100 km do local de origem do surto da SARS em 2003, morreram devido a um surto de uma nova estirpe letal do vírus corona (a SADS), que se revelou ser 98 % idêntico a um vírus corona encontrado em morcegos em uma caverna próxima11. Felizmente, a transmissão para humanos da SADS não ocorreu, mas testes laboratoriais subsequentes demonstraram que tal transmissão poderia ter sido possível.12
A província de Hubei, onde Wuhan está localizada, é um dos cinco maiores produtores de suínos da China. Durante a última década, pequenas fazendas de porcos na província foram substituídas por grandes fazendas industriais e por operações contratuais de médio porte, onde centenas ou milhares de porcos geneticamente uniformes são confinados em galpões de alta densidade. Essas fazendas industriais são o local de reprodução ideal para a evolução de novos patógenos13.
As fazendas industriais de porcos de Hubei ainda estão cambaleando devido a um surto maciço de peste suína africana que atingiu a província e outras partes da China há pouco mais de um ano, exterminando até a metade do plantel nacional14. Nestas condições, é inteiramente possível que um surto de um novo coronavírus entre os porcos da província passe despercebido.
GRAIN e outras organizações e cientistas têm lançado o alarme há mais de uma década sobre como a industrialização e a consolidação corporativa da produção de carne tem gerado riscos crescentes para o surgimento de pandemias globais, como a Covid-1915. Mas esta realidade tem sido completamente ignorada pelos governos e pelas grandes empresas de carne a que estão vinculados. Como observou o biólogo evolucionista Rob Wallace16, "Quem pretende entender por que os vírus estão se tornando mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção animal. Atualmente, poucos governos, e poucos cientistas, estão preparados para fazê-lo". Com o crescente massacre causado pelo Covid-19, uma mudança radical de direção é mais urgente do que nunca.
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