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As empresas de psicultura fazem tentativa capenga para resolver seu grande problema com o desmatamento no Cerrado

by GRAIN | 6 Mar 2020

Em Dezembro, três importantes operadoras da indústria mundial de peixes e frutos do mar -Tesco, Nutreco e Grieg Seafood - anunciaram um plano para obter soja sustentável produzida no Cerrado, região notória pelo desmatamento e grilagem de terras. A sua Iniciativa para o financiamento dos produtores de soja no Cerrado, chamada em inglês de “The Funding for Soy Farmers in the Cerrado Initiative” (FSFCI), tem o objetivo de conter novos desmatamentos no bioma por meio de pagamentos aos produtores para não expandir a produção de soja sobre a vegetação nativa. Trata-se de um reconhecimento indireto de que a obscura indústria da aquicultura está profundamente implicada com os problemas associados a produção de soja no Cerrado brasileiro e se preocupa com sua imagem.

A indústria da aquicultura é um dos consumidores de soja de mais rápido crescimento, principalmente devido à demanda de ração para os peixes. Embora menos da metade do peixe consumido atualmente no mundo venha da aquicultura (fazendas de criação confinada), a FAO afirma que este número aumentará para 60% em 2030. Esta tendência, somada ao contexto de crescente consumo global por alimentos do mar no mundo, resulta em uma maior pressão para a expansão da área plantada de soja no Brasil.

O Cerrado, com sua grande biodiversidade, vem sendo uma das principais áreas no mundo onde se expandiu o cultivo de soja nos últimos 15 anos. Quase do tamanho do México, estendendo-se do centro oeste brasileiro da fronteira oeste com o Paraguai rumo ao nordeste até a costa atlântica, o Cerrado teve cerca de metade de sua vegetação nativa convertida em fazendas para agricultura, pecuária e áreas urbanas nos últimos 50 anos. Atualmente, apenas 20% do ecossistema original permanece intacto. Mesmo que a atenção mundial esteja centrada na Amazônia, vem crescendo a conscientização sobre o desmatamento no Cerrado, assim como os esforços para tentar contê-lo.

Isto criou um problema para as empresas que querem lucrar com o fornecimento global barato da soja, mas têm sua imagem pública exposta. Assim, elas vêm se batendo para encontrar formas para que a soja siga fluindo enquanto se distanciam da destruição que ocorre no Cerrado. Em 2017, 100 companhias alimentícias de varejo, fast food e financiadores, incluindo McDonalds, Walmart, Unilever e Tesco saíram em apoio ao Manifesto do Cerrado, no qual se comprometem a eliminar o desmatamento de suas cadeias de fornecedores (enquanto silenciam sobre a redução de sua dependência de grãos de soja do Cerrado). Agora três companhias que lideram o mercado de peixes e frutos do mar, e que firmaram o Manifesto, dão um passo adiante ao propor um mecanismo financeiro para incentivar os produtores a cultivar soja apenas na área agrícola já existente e não expandir para vegetação nativa (mesmo que autorizado pelo Código Florestal).

Tesco, grande cadeia de supermercados inglesa compradora de peixes e frutos do mar confinados, promete doar US$13.1 milhões para a iniciativa nos próximos 5 anos. Nutreco, uma das maiores produtoras mundiais de rações para aquicultura, se comprometeu com US$1.1 milhões anuais no mesmo período. E Grieg Seafood, com fazendas de salmão na Noruega, Canadá e Reino Unido, irá contribuir com US$2.00 por tonelada de soja utilizada anualmente na ração de suas fazendas de salmão nos próximos 5 anos. Há ainda um longo caminho para alcançar os US$ 250 milhões que os promotores da iniciativa dizem ser necessários para garantir que os agricultores só produzam sob áreas já convertidas para agricultura e pecuária nos próximos cinco anos. Mas a falta de fundos comprometidos é apenas uma parte do problema com a iniciativa.

Nós vemos três principais razões para duvidar que esta nova iniciativa efetivamente irá deter o desmatamento.

1. Sem pagamentos, não há conservação.

Este é o maior problema com este tipo de iniciativa voluntária. Não há certeza sobre quem paga e porquanto tempo. Se após cinco anos desta iniciativa, as companhias diminuírem ou cessarem os pagamentos, quem irá frear os produtores de soja de desmatarem novamente? Assumindo que eles realmente tenham parado de desmatar, o que não é provável com as míseras ofertas financeiras atuais sob a mesa.

Alguns argumentam que esta questão pode ser resolvida pela atribuição de valor econômico para a conservação de plantas, animais e ecossistemas, mas esta abordagem carrega um conjunto de outros problemas. Colocar um preço sobre a natureza transformando-a em uma commodity negociável em bolsas de valores para competir com as mesmas commodities agrícolas responsáveis pela destruição ambiental, se mostra uma abordagem bastante questionável e controversa para resolver o problema. Assim, iniciativas voluntárias baseadas em pagamentos, seja por doações ou construção de mercados, simplesmente não eficazes para lidar com o problema do desmatamento.

2. Deslocamento do desmatamento

Uma iniciativa voluntária como essa, focada em um produto e em uma região, acaba por deslocar o desmatamento para áreas onde não há incentivos econômicos para conservar. É exatamente isto o que ocorreu com a Moratória da Soja, firmada a partir de 2006, orientada exclusivamente para a soja e apenas no bioma amazônico, excluindo a pecuária – maior vetor de desmatamento na região- , e as áreas de cerrados e campos gerais dentro da Amazônia legal. Deste modo, a soja passou a se expandir sobre as áreas já desmatadas pelo gado, que por sua vez passou a avançar sobre a floresta. Ao mesmo tempo, os monocultivos de soja passaram a estar liberados para avançar sobre áreas de Cerrado que não estão cobertas pela Moratória.

Com tal arranjo, o ciclo do desmatamento e grilagem de terras no bioma Amazônia, assim como o avanço da fronteira agrícola para o Cerrado, passam a estar em pleno acordo com a Moratória. É exatamente por isto que as maiores corporações do agronegócio e processamento de grãos, como a Cargill e Bunge, firmam a Moratória da Soja para o bioma Amazônico, mas se mantém afastadas do Manifesto do Cerrado. É digno de nota que o desmatamento no bioma amazônico já havia caído em mais de 40% em 2005, precisamente quando se inicia um amplo Plano de Ação para prevenção e controle do desmatamento da Amazônia (PPCDAM), em 2004 - mas as corporações ficaram com todo o crédito (até mesmo com um prêmio ambiental) por seu apoio à Moratória.

Não se trata apenas de como o desmatamento se move de uma região a outra dentro do Brasil. O desmatamento pelo agronegócio também é galopante em outras áreas dos países vizinhos: o Chaco Argentino e Paraguaio; os llanos colombianos, o bosque seco Chiquitano na Bolívia.


Paisagens em risco pela expansão da soja

Nos últimos 50 anos, a área de terra destinada para a soja cresceu dez vezes, cobrindo cerca de 1 milhão de km²

Brasil: a maior ameaça hoje é ao Cerrado; há impactos indiretos e residuais (e futuras ameaças potenciais) à Amazônia e à Mata Atlântica.

Bolívia: os maiores níveis de conversão estão nos bosques secos chiquitanos; também no Grande Chaco, no Cerrado e há impactos de poluição rio abaixo no Pantanal.

Argentina: os impactos primários são sobre o Grande Chaco e em várias partes das pradarias dos Pampas. Também há impacto nas florestas de Yunga.

Uruguai: o impacto primário é sobre as pradarias, em particular ao redor do rio Uruguai, com impactos de contaminação das zonas húmidas e da vida silvestre.

Fonte:WWF


3. É possível uma cadeia global de soja sustentável nas condições atuais?

Duvidamos seriamente.

Globalmente, área plantada com soja está crescendo rapidamente. Entre 2009 e 2018 a área global com soja cresceu 22% para 123 milhões de hectares. A projeção é que para 2028 crescerá mais 23% para 151 milhões de hectares. A expansão é impulsionada principalmente pelo aumento da produção industrial de carne, laticínios e peixe por todo o mundo, bem como um aumento alarmante nas vendas de alimentos ultra processados. Onde será plantada toda esta soja extra?

A resposta: quase toda no Brasil.

Área de soja (https://ussoy.org/long-term-world-soybean-outlook/)

No início dos anos 60, o Brasil contava com menos de 250 mil hectares de soja cultivados. Em 1990 este número disparou para mais de 11 milhões de hectares, e em 2018 triplicou a área para mais de 34 milhões de hectares (Faostat). De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), antes do final desta década, o Brasil vai cultivar cerca de 50 milhões de hectares de soja - outro aumento de mais de 40%. (ver gráfico) Muito desta expansão está sendo impulsionada por empresas estrangeiras que especulam com o aumento dos preços da terra e estão implicadas na onda de incêndios de 2019 no Cerrado.

Simplesmente não há como o Brasil realizar tal expansão de uma forma sustentável. Umas poucas empresas de alimentos do mar que jogam dinheiro em fazendeiros de soja na região do Cerrado podem ganhar alguns pontos de relações públicas, mas claramente não vai frear o desmatamento.

Saltar do comboio das mercadorias

A campanha brasileira em defesa do cerrado vem registrando inúmeros conflitos de terra causados pela expansão da produção de soja e sua infraestrutura logística para viabilizar as exportações. As comunidades locais vêm sendo devastadas por uma massiva grilagem de suas terras, seguidas por expulsões violentas, por intoxicação e problemas de saúde causadas por agrotóxicos (especialmente via pulverização área), contaminação e esgotamento de suas fontes de água devido à intensidade da irrigação, apenas para citar alguns dos problemas.

Prover pagamentos e incentivos econômicos aos que historicamente são responsáveis pelo desmatamento do Cerrado é uma abordagem bastante injusta, e, ao final, nunca irá funcionar. Antes, o Brasil (e o resto do mundo) deveria se perguntar como podemos saltar deste comboio cada vez mais destrutivo dos produtos da soja, e frear a expansão destas plantações. Isto envolve necessariamente nos afastar da produção industrial da pecuária e aquicultura, que hoje impulsiona grande parte da expansão da soja. E exigirá um retorno ao respeito e apoio ao trabalho, ao conhecimento, às técnicas e práticas intergeracionais dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado.

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Author: GRAIN
Links in this article:
  • [1] https://news.mongabay.com/2020/02/private-firms-will-pay-soy-farmers-not-to-deforest-brazils-cerrado/
  • [2] http://www.fao.org/3/i9540es/I9540ES.pdf
  • [3] https://www.reuters.com/investigates/special-report/brazil-deforestation/
  • [4] https://www.theconsumergoodsforum.com/initiatives/environmental-sustainability/key-projects/deforestation/soy/business-for-the-cerrado/
  • [5] https://e360.yale.edu/features/ecosystem_services_whats_wrong_with_putting_a_price_on_nature
  • [6] https://www.sciencedaily.com/releases/2017/04/170429095035.htm
  • [7] https://www.mma.gov.br/component/k2/item/616?Itemid=1155
  • [8] https://tntp.org/news-and-press/view/keystone-policy-center-honors-national-leaders-in-energy-education-environm
  • [9] https://ussoy.org/long-term-world-soybean-outlook/
  • [10] http://www.fao.org/faostat/en/#data/QC
  • [11] https://grain.org/e/6339
  • [12] http://semcerrado.org.br/