As sementes camponesas estão em ataque em todo lado. Quer por pressão corporativa, quer por leis que, gradualmente, têm colocado limitações aos camponeses e camponesas em muitos países, no que devem fazer com suas próprias sementes e com as que compram. A coleção e preservação de sementes, uma prática que existe há mil anos como a base da agricultura, está a ser rapidamente criminalizada. O que podemos então fazer face a isto? (Foto: Tineke D'Haese)
Tabela de conteúdos
1. As leis de sementes ilegalizam as sementes camponesas
2. As sementes africanas: Um tesouro ameaçado
3. Américas: A resistência maciça contra as “leis da Monsanto”
4. Ásia: A luta contra uma nova vaga de sementes industriais
5. Europa: Camponeses e camponesas esforçam-se por resgatar a diversidade agrícola
Aja! – Cartaz publicado pela GRAIN e La Via Campesina
Mais experiências dos países – publicado pela GRAIN e a La Via Campesina
Seed laws around the world – map & table published by GRAIN (english only)
Acordos comerciais que privatizam as sementes – Publicação da GRAIN
As sementes são um dos pilares insubstituíveis da produção alimentar. Há séculos que os camponeses e camponesas do mundo inteiro o sabem. É uma das noções mais universais e básicas que partilham todos os camponeses. Salvo nos casos em que tenham sofrido agressões extremas ou circunstâncias extremas, quase todas as comunidades agrícolas sabem recolher, armazenar e partilhar as sementes. Milhões de famílias e comunidades agrícolas trabalharam para criar centenas de culturas e milhares de variedades de cultivos. A troca regular de sementes entre as comunidades e as populações permitiu a adaptação das culturas a diferentes condições, climas e topografias. Foi assim que a agricultura se espalhou, desenvolveu e alimentou o mundo com uma dieta diversificada.
Mas as sementes também estão na base de processos produtivos, sociais e culturais que deram às populações locais a capacidade resoluta para manter uma certa medida de autonomia e recusar-se a ser completamente controlada pelas grandes empresas e o grande capital. Do ponto de vista dos interesses empresariais que tentam controlar a terra, a agricultura, a alimentação e o mercado enorme que todos esses fatores representam, essa independência é um obstáculo.
Com a Revolução Verde, as empresas lançaram uma série de estratégias para conseguir ganhar esse controlo: programas de investigação e alargamento da agricultura, cadeias globais de mercadorias e a expansão astronómica da agricultura de exportação e do agronegócio. A maioria dos camponeses e camponesas e dos povos indígenas resiste e continua a resistir de diferentes formas a essa tentativa de arrebatamento do poder.
Atualmente, o sector empresarial está a tentar travar essa rebelião, com uma ofensiva legal global. Com o aparecimento da Organização Mundial do Comércio, praticamente todos os países do mundo começaram a aprovar leis conferindo às empresas a posse sobre diversas formas de vida. Seja através de patentes, seja por meio dos chamados direitos dos obtentores de plantas ou de leis de proteção das variedades vegetais, já é possível privatizar microrganismos, genes, células, plantas, sementes e animais.
Movimentos sociais do mundo inteiro, especialmente organizações de camponeses e agricultores, resistem e mobilizam-se para impedir a aprovação efetiva dessas leis. Em muitas partes do mundo, a resistência perdura e soma até algumas vitórias. Para consolidar este movimento, é muito importante não só esclarecer o maior número de pessoas possível, sobretudo as mais afetadas que habitam nas aldeias e nas comunidades rurais, acerca dessas leis e dos respetivos objetivos e impactos, mas também sobre a capacidade dos movimentos sociais para as substituir por leis que protejam os direitos dos camponeses e camponesas.
As leis atuais de sementes promovidas pela indústria apresentam as seguintes caraterísticas:
a) Evoluem constantemente e tornam-se mais agressivas. Através das sucessivas vagas de pressão política e económica — em particular, por meio dos chamados acordos de livre comércio, tratados bilaterais de investimento e iniciativas de integração regional — todas as formas “suaves” de direitos de propriedade sobre as sementes foram endurecidas e rapidamente se tornam cada vez mais restritivas. As leis das sementes e os direitos sobre as variedades vegetais são continuamente alvo de revisão, para serem adaptadas às novas exigências da indústria das sementes e da biotecnologia.
b) As leis que concedem direitos de propriedade sobre as sementes foram reforçadas por outras normas que deveriam antes assegurar a qualidade das sementes, a transparência do mercado, a prevenção da contrafação, etc. Essas normas regulam não só a certificação e a comercialização das sementes, mas também as regras fitossanitárias. Através delas, por exemplo, o agricultor passa a só poder comprar ou utilizar sementes comerciais, concebidas para a agricultura industrial. Por outro lado, as normas criminalizam o camponês e a camponesa que dê sementes ao próprio filho ou que as troque com um vizinho. Em resultado, as feiras e trocas de sementes — uma forma crescente de resistência ao arrebatamento do controlo sobre as sementes — estão a ser ilegalizadas em cada vez mais países.
c) Ao reforçar a privatização, estas leis ignoram os princípios básicos da justiça e da liberdade, violando descaradamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Essas leis de sementes impuseram como regra a presunção de culpa de quem for acusado de desrespeitar os direitos de propriedades sobre as sementes, violando, assim, o princípio de que todas as pessoas são inocentes, até prova em contrário. Nalguns casos, os acusados, podem ser alvo de sansões, sem serem informados das acusações. Estas leis de sementes tornam até obrigatório denunciar os alegados transgressores; legalizam as buscas e a apreensão de sementes com base em meras suspeitas (mesmo sem mandato) e permitem que sejam agências privadas a conduzir essas inspeções.
d) As leis são redigidas numa linguagem vaga, incompreensível e contraditória, deixando muita margem para interpretações. Na maioria dos casos, passam pelas instâncias legislativas em segredo ou através de acordos internacionais que não podem ser debatidos a nível nacional ou local.
A experiência demonstra que, quando as organizações sociais fazem campanhas de informação e mobilização para denunciar o secretismo e a publicidade enganosa por detrás dessas leis, as pessoas rejeitam-nas. A maioria delas rejeita a ideia de uma empresa poder ser proprietária de uma variedade vegetal e de os camponeses e camponesas serem proibidos de reproduzir as suas próprias sementes. Consideram uma situação perfeitamente absurda. Para além disso, as pessoas em geral não concordam na criminalização súbita do trabalho que os camponeses e camponesas fazem para alimentar o mundo. A resistência das pessoas tem travado o saque legal que estas leis incorporam em vários locais.
Dita também a experiência que não há limites para quem quer privatizar, monopolizar e controlar as sementes em nome das grandes transnacionais. Não há possibilidade de negociar, fazer concessões ou chegar a um acordo comum que permita a coexistência pacífica dos diferentes interesses. A agenda empresarial visa impedir os camponeses e camponesas de recolher as suas sementes e torná-los dependentes das sementes comercializadas.
Da mesma forma, diz a experiência que é possível resistir e desmantelar esses ataques. Mas, para isso, são precisas ferramentas de informação que possam ser amplamente partilhadas, para afastar o fumo das promessas falsas e das palavras bonitas, para que as pessoas possam ver o que realmente implicam as leis das sementes. Esta brochura tem o intuito de ajudar a facilitar esse trabalho.
1. As leis das sementes ilegalizam as sementes camponesas
A substituição das sementes camponesas pelas industriais é um processo que tem vindo a ganhar cada vez mais terreno e velocidade nas últimas décadas. No século xx, quando a obtenção e a produção de sementes se tornaram atividades independentes da agricultura em si, as variedades camponesas foram sendo gradualmente substituídas pelas industriais. Na Europa e na América do Norte, esse processo estendeu-se ao longo de várias décadas, impulsionado por novas tecnologias, como a das sementes híbridas. Na Ásia, na África e na América Latina arrancou nos anos 1960, com os chamados programas de desenvolvimento a promoverem colheitas “de alto rendimento” e a utilização dos insumos químicos (a chamada Revolução Verde). Nos últimos 20 anos, temos assistido a uma nova situação: o lançamento de uma vaga agressiva de leis das sementes, amiúde em nome da liberalização do comércio, com o propósito de travar quase todas as atividades realizadas pelos camponeses e camponesas com as suas sementes.
Os camponeses e camponesas que produzem e trocam as suas próprias sementes, no seio das suas comunidades ou com as comunidades vizinhas, não necessitam de leis para lhes reger a atividade. Frequentemente orais, estabelecidos e respeitados em cada comunidade, os direitos coletivos de utilizar as sementes comunitárias não carecem de regulação. Mas assim que as sementes passam a ser comercializadas em grande escala pelas empresas que as produzem, por métodos desconhecidos e em locais incertos, muitas vezes além-fronteiras, são precisas leis para combater a fraude, a contrafação, as sementes de má qualidade que não germinam ou são portadoras de doenças e para regular os OGM. Torna-se igualmente necessário criar leis para proteger tanto as sementes locais como os sistemas socioculturais que garantem a sobrevivência dos sistemas de produção alimentar que as populações preferem. Essas leis para a “prevenção da fraude comercial” e a proteção da soberania alimentar são fruto do trabalho das organizações rurais e uma conquista. Infelizmente, porém, o enfraquecimento da pressão exercida pela mobilização das organizações populares e dos camponeses e camponesas permite que a indústria reformule grande parte dessas leis, para que estas passem a promover as suas próprias sementes industriais “melhoradas” e a proibir as sementes camponesas.
O termo “leis das sementes” refere-se geralmente a direitos de propriedade intelectual, como as leis das patentes ou de proteção das variedades vegetais. Mas, na verdade, existem muitas outras leis relativas às sementes, entre as quais, as que regulam o comércio e os investimentos; normas fitossanitárias; certificação e as chamadas “boas práticas agrícolas” relativas à comercialização; ou as chamadas normas de biossegurança (veja a caixa ). No seu todo, as referidas leis resultam muitas vezes na ilegalização das sementes camponesas que passam a ser consideradas inadequadas e a ser tratadas como fonte de risco a eliminar.
As novas leis das sementes refletem o poder crescente da indústria alimentar e da indústria agrícola. Até à década de 1970, eram empresas estatais, pequenas casas de sementes e centros governamentais de investigação que desenvolviam e distribuíam novos tipos de variedade de culturas. A partir de então, temos vindo a assistir a um processo maciço de tomada de controlo das pequenas empresas e dos programas públicos pelas grandes empresas e ao consequente fortalecimento do setor privado. Hoje em dia, 55% do mercado global das empresas estão nas mãos de apenas dez empresas. E o poder de pressão desses gigantes — como a Monsanto, a Dow ou a Syngenta — é muito forte. Foi assim que já conseguiram impor medidas restritivas que lhes dão controlo de monopólio.
Os acordos de investimento e comércio são a arma de eleição para impor leis das sementes onde elas não existiam ou para tornar as existentes mais favoráveis para as transnacionais. O principal objetivo é evidente: impedir os camponeses e camponesas de recolher as suas próprias sementes e obrigá-los a comprar as sementes industriais. Nesse processo, afasta-se o estado da obtenção e da produção de sementes. Na África, as sementes camponesas perfazem 80-90% do que se planta em cada estação. Na Ásia e na América Latina, representam 70-80%. Desse modo, sob a perspetiva do CEO de um agronegócio, ainda há por aí muito mercado a criar e a açambarcar. Até na Europa, onde as sementes industriais já dominam a agricultura, as empresas continuam a exercer pressão para que se fortaleçam as normas vigentes, de modo a eliminar bolsas de resistência e a restringir a capacidade dos camponeses e camponesas para reutilizar as sementes industriais. Uma vez impostas, e embora isso nem sempre aconteça, essas leis tornam-se muito repressivas: as sementes camponesas são confiscadas e destruídas; os camponeses e camponesas são identificados e vigiados; e alguns são alvo de processos criminais e penas de prisão por simplesmente continuarem a trabalhar nos seus sistemas camponeses e utilizarem as suas próprias sementes.
Ao mesmo tempo, para onde quer que olhemos, vemos quase sempre o poder da indústria ser contestado. O desafio a esse poder é multifacetado; faz-se pela organização e mobilização maciças, consiste em contrariar a propaganda de que essas leis das sementes são necessárias ou do interesse das pessoas, apoia-se em muito trabalho mediático, dissemina-se pela educação nas escolas e nos locais de culto, bem como nos teatros de rua, apela à desobediência civil em desafio às leis injustas e, acima de tudo, baseia-se no trabalho diário de desenvolver continuamente sistemas agrícolas camponeses de pequena escala. Esses sistemas incluem a utilização exclusiva não só de sementes e espécies locais ou indígenas, mas também de terra, territórios, culturas e modos de vida das gentes rurais. Segundo a experiência, quando ganha força, essa resistência na defesa das sementes camponesas leva as instâncias jurídicas e os parlamentos a suspender as leis nocivas — ou, pelo menos, a pô-las em causa. Dado o poder e os interesses em causa, não será possível derrubar estas leis das sementes numa única batalha. É preciso persistir na luta para defender a agricultura camponesa e a soberania alimentar no seu todo.
Nas páginas que se seguem, apresentamos uma síntese desse mosaico de lutas.
Nova ameaças
Enquanto as primeiras patentes protegiam variedades homogéneas e estáveis, as tecnologias genéticas atuais permitem o patenteamento de características genéticas específicas (resistência a um inseto, tolerância a um herbicida...). Essas patentes protegem todas as plantas e sementes que contenham e demonstrem a característica específica que foi patenteada. É o que acontece com os OGM e, também com várias plantas produzidas através de tecnologias genéticas que não sejam a transgénese, como, por exemplo, a mutagénese. Tais patentes permitem que a indústria apreenda quaisquer sementes camponesas que tenham sido contaminadas por pólenes de plantas com a característica patenteada ou sementes que contenham as características patenteadas. Algumas dessas patentes abrangem ainda características naturais em plantas que os agricultores cultivam há gerações; mas até essas se tornam, uma a uma, propriedade das multinacionais das sementes.
A PVP é muitas vezes apresentada como sendo preferível a uma patente, porque autoriza a utilização livre de variedades vegetais protegidas na investigação e na seleção de outras variedades. É o argumento principal utilizado para convencer os governos a adotar as leis da Convenção UPOV. No entanto, não traz quaisquer vantagens para os produtores, sobretudo desde a UPOV 1991. A exceção da utilização na investigação e na seleção só beneficia a indústria e os investigadores e deixa de abranger os camponeses e camponesas que façam a seleção nas suas terras.
Juntamente com as novas patentes, vem o envolvimento do Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogénicos para a Alimentação e a Agricultura (IT-PGRFA) que abre caminho para a privatização de todas as sementes apreendidas a agricultores do mundo inteiro que são guardadas em grandes bancos mundiais de sementes. Ao abrigo do Tratado, pretende-se digitalizar e publicar online as sequências genéticas de todas essas sementes — o que facilitará o patenteamento pelas multinacionais. Camponeses, camponesas e organizações da sociedade civil tentam convencer uma maioria de governos que aderiu ao Tratado a opor-se a essa facilitação global da biopirataria que é completamente contrária aos objetivos iniciais do Tratado: garantir o acesso universal aos bancos mundiais de sementes e reconhecer “os direitos dos camponeses e camponesas de recolher, utilizar, trocar e vender as suas sementes camponesas.”
Tipos de leis das sementes promovidas pela indústria
As leis da comercialização são o tipo de norma mais antigo e generalizado referente às sementes. Definem os critérios necessários para a comercialização das sementes. Assim sendo, são muitas vezes fundamentadas como sendo meios para proteger os agricultores e os consumidores de sementes, garantindo-lhes unicamente boas sementes — tanto em termos de qualidade física (taxa e germinação, pureza, etc.) como em termos de variedade (potencial genético). Mas que critérios se utilizam? Nos países que adotaram o sistema de “catálogo obrigatório”, só se permite a comercialização de sementes de variedades que preencham três requisitos fundamentais: têm de ser “distintas”, “uniformes” e “estáveis” (critérios EUE). Isso significa que as plantas produzidas a partir de um lote de sementes serão iguais e terão características duradouras. As variedades camponesas não preenchem esses critérios, porque são diversificadas e evoluem. As leis do mercado também tendem a exigir variedades com “valor de cultivo e utilização”, o que geralmente se refere à sua produtividade em monocultivos dependentes de uma grande quantidade de fertilizantes químicos. Outro problema é o da definição de “comercialização”. De acordo com as leis das sementes de vários países, a definição de comercialização não se limita à venda a troco de dinheiro — pode incluir a troca livre, a negociação, a transferência de sementes em redes ou, até, a doação de sementes como presente.
As leis da propriedade intelectual aplicadas às sementes são normas que reconhecem uma pessoa ou entidade — em geral, uma empresa — como detentora exclusiva de sementes com determinadas características. O proprietário tem, portanto, o direito jurídico de impedir os outros de utilizarem, produzirem, trocarem ou venderem essas sementes. A justificação é dar às empresas o monopólio temporário para que possam obter as receitas dos seus investimentos, sem enfrentar concorrência. Mas os problemas aqui são muitos.
No que se refere às sementes, existem essencialmente dois tipos de sistema de propriedade intelectual: as patentes e a Proteção das Variedades Vegetais (PVP). Os EUA começaram a permitir o patenteamento das plantas nos anos 1930, quando os obtentores floricultores exigiram uma espécie de direitos de autor sobre as suas “criações”, para impedir que outras pessoas lucrassem com as suas flores “roubadas”. As patentes das plantas são direitos muito vincados: ninguém pode produzir, reproduzir, trocar, vender ou, até, utilizar a planta patenteada para investigação sem autorização do proprietário. Para utilizarem sementes patenteadas, os agricultores têm de pagar ao proprietário da patente. Os agricultores que compram sementes patenteadas também são obrigados a cumprir várias condições: que não reutilizarão as sementes das suas colheitas na época seguinte; que não farão experiências com elas; que não as venderão nem as darão a ninguém. A empresa Monsanto pede mesmo aos agricultores que espiem os vizinhos e denunciem aqueles que estiverem a utilizar indevidamente as “sementes da ‘Monsanto”. Hoje em dia, os OGM são geralmente patenteados.
A lei de Proteção das Variedades Vegetais é uma espécie de patente desenvolvida na Europa especificamente para os obtentores de plantas. Implicando os mesmos critérios EUE exigidos para o catálogo, começou por conceder menos poderes do que a patente. Em 1961, os estados europeus criaram a União para a Proteção das Novas Variedades Vegetais (UPOV) que harmoniza as normas, através da Convenção UPOV, já várias vezes revista. A UPOV atribui aos obtentores direitos sobre as suas variedades comerciais e proíbe outros de produzir sementes para fins comerciais. No entanto, os outros obtentores podem utilizar materiais “protegidos” (ou privatizados) em programas de obtenção. Nas primeiras décadas da existência da UPOV, os camponeses e camponesas ainda podiam recolher e reutilizar as suas próprias sementes de variedades protegidas. Com a revisão da Convenção UPOV em 1991, contudo, a proteção das variedades vegetais passou a abranger a proibição da produção agrícola das variedades protegidas, incluindo a colheita e a produção pós-colheita. Ao abrigo da UPOV 91, os agricultores já não podem reutilizar sementes de variedades protegidas — exceto em casos raros e mediante pagamento. Os transgressores ou suspeitos de transgressão sujeitam-se a que lhes façam buscas sem mandato às casas e aos cultivos, a que lhes apreendam e destruam os produtos processados e a que lhes sentenciem penas de vários anos de prisão. A UPOV 91 também permite que as empresas privatizem com muito mais facilidade as sementes que os agricultores produzem nas suas próprias terras e proíbe a utilização das variedades locais.
Os acordos de comercialização e investimento são uma ferramenta que as empresas utilizam, para obrigar os governos a adotar políticas que promovam os direitos empresariais sobre as sementes. Por exemplo, quase todos os países do mundo fazem parte da Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem um acordo sobre os aspetos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (TRIPS). O acordo TRIPS obriga os países a impor uma qualquer forma de proteção das variedades vegetais, sob pena de sofrer sanções. Para além disso, muitos países foram forçados a aderir à UPOV 91 — através de acordos bilaterais de comércio livre, ajuda ao desenvolvimento, etc.
Os acordos comerciais como os que exigem a OMC e as ZCL, instituem normas comerciais supostamente com o fim de proibir a discriminação, mas muitos também concedem acesso preferencial do agronegócio a determinados mercados. Em resultado, os governos poderão deixar de conseguir implementar programas de adjudicação pública para o estado comprar sementes aos agricultores locais. (A justificação é que, ao restringir a concorrência, os requisitos das adjudicações locais retiram vantagens comerciais às transacionais.) Trata-se de condições difíceis que dão preferência às empresas, em detrimento dos camponeses, camponesas e agricultores ou consumidores.
Impostos por países como os EUA e os membros da UE, os tratados bilaterais de investimentos também contêm uma norma que considera a propriedade intelectual sobre as sementes uma forma de investimento estrangeiro a ser protegida, tal como um poço de petróleo ou uma fábrica de automóveis. Desse modo, se esses investimentos forem expropriados ou nacionalizados, ou se alguma coisa inviabilizar os lucros previstos, a empresa americana ou europeia em questão pode instaurar um processo ao país em que investiu num tribunal internacional (resolução de disputas investidor-estado).
As leis fitossanitárias e de biossegurança também podem limitar a utilização e o acesso dos agricultores em relação às suas próprias sementes. Essas leis visam prevenir os riscos que as sementes possam implicar para a saúde ou para o ambiente, incluindo a contaminação pelos OGM, podendo até ser útil, nesse sentido. As normas fitossanitárias, por exemplo destinam-se a impedir a disseminação de doenças por sementes produzidas num local e exportadas para outro. O problema é o facto de essas leis servirem, na realidade, para proteger os interesses da indústria. Por exemplo, podem proibir trocas de sementes entre produtores de pequena escala, ou levar à apreensão e subsequente destruição dessas sementes, porque os agricultores são equiparados às multinacionais que vendem as sementes em quantidades muito superiores e para locais ainda mais distantes — correndo, por isso, muito mais risco de espalharem doenças. Essas leis podem, pois, considerar as sementes camponesas potencialmente perigosas ou arriscadas e as industriais — as que mais tendem a contaminar e a espalhar doenças — seguras.
De igual modo, as leis da biossegurança produzem frequentemente o efeito contrário àquele que propõem. Em vez de erguer barreiras à entrada dos OGM — perigosos por natureza — criam um quadro legal para gerir os riscos e, assim, facilitar a aceitação e a disseminação das sementes transgénicas. Por exemplo, as leis da biossegurança tendem a estabelecer procedimentos legais para o cultivo de OGM que resultam em normas que os legalizam, apesar de eles não serem nada seguros. Essas leis também podem obrigar os agricultores que rejeitam os OGM e produzem as suas próprias sementes a submeter as suas sementes a análise, para garantir a ausência de OGM. É evidente que não o podem fazer e se veem obrigados a comprar sementes OGM industriais. Há casos em que estas leis facilitam muito a importação e exportação de colheitas OGM, pois provêm os países implicados dos mecanismos legais necessários para as supervisionar. Mas há outra situação, como a da Europa, cujas leis de biossegurança que impõem medidas preventivas para travar o cultivo ou a importação de OGM são altamente criticadas, porque a indústria das semente as considera barreiras comerciais.
De notar que as agências das Nações Unidas, como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento ou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual são hoje grandes proponentes de todas as leis supracitadas. Redigem projetos de leis-modelo e ensinam os governos a implementá-las.
O único texto internacional que reconhece os direitos fundamentais dos produtores, tanto de utilização, troca e venda das sementes camponesas como de proteção dos seus conhecimentos, de partilha dos benefícios e de participação nas decisões nacionais relativas às sementes. A implementação do Tratado está sujeita à legislação nacional, mas grande parte dos 130 estados que ratificaram o Tratado não o respeita. O Tratado visa estabelecer um sistema multilateral de troca que concede à indústria o acesso a todas as sementes — recolhidas nas terras de camponeses e camponesas do mundo inteiro e guardadas em grandes bancos de sementes globais — em troca da chamada “partilha de benefícios” que, na prática, nunca é paga.
2. As sementes africanas: um tesouro ameaçado
A África está a ser aliciada por governos estrangeiros a impor novas parcerias público-privadas e programas de desenvolvimento que visam privatizar os mercados das sementes, expulsar o setor público da obtenção de plantas e fazer dos produtores intermediários da cadeia de fornecimento agroindustrial a nível global. Em acréscimo, empresas de sementes e fundações privadas estrangeiras ajudaam os estados africanos a reescrever as leis, para tornar o comércio e o investimento “justo” e “responsável”, ou seja, para apoiarem os interesses empresariais. Em resultado, os camponeses e camponesas e as organizações da sociedade civil em África passam os seus dias a lutar contras as novas leis das sementes.
Gana: os estudantes e os sindicados unem-se aos camponeses e camponesas para se oporem a uma lei das sementes restritiva
No Gana, estudantes e sindicatos uniram-se a organizações de produtores de pequena escala, numa mobilização contra um Projeto-lei sobre os Direitos dos Obtentores de Plantas (PVP). Atualmente a ser analisado no parlamento, o projeto-lei instituiria uma lei nacional das sementes baseada na UPOV ’91. Tal como aconteceu em muitos países do mundo inteiro, a lei está a ser utilizada para introduzir restrições legais à utilização das sementes pelos agricultores, que vão bem para além das já muito restritivas disposições da UPOV ’91. Por exemplo, o projeto-lei declara que “na ausência de provas em contrário” presume-se que os obtentores sejam os proprietários da variedade em causa, facilitando-se, assim, a biopirataria e o confisco das sementes. Para além disso, segundo o projeto-lei, se utilizarem ilegalmente uma variedade protegida — reproduzindo sementes de uma variedade “protegida” e partilhando-as com os vizinhos, por exemplo — os camponeses e camponesas sujeitam-se ao pagamento de uma multa de até 2000 units e a uma pena de prisão de até dois anos.
Desde 2011 que o movimento de resistência têm conseguido ganhar um amplo apoio contra o projeto-lei, demonstrando aos cidadãos vulgares do Gana que os afetados não serão apenas os agricultores. Argumentam que a proteção da propriedade sugerido no projeto-lei é simplesmente a pré-condição que as empresas transnacionais procuram impor para operarem na África; é dada preferência às colheitas para gerar lucros e exportar, bem como aos negócios de um número reduzido de membros da elite, em detrimento das colheitas para alimentar a população do Gana. É generalizada a noção de que o projeto-lei se centra numa “Lei da Monsanto”, dando ênfase à agricultura industrial e comercial, em vez de assegurar o bem-estar dos camponeses e camponesas. Está bem explícito no Memorando do projeto-lei, onde se lê que “visa melhorar a quantidade, a qualidade e o custo dos alimentos, do combustível, da fibra e das matérias-primas para a indústria”. A aprovação da lei representará um compromisso da parte do governo do Gana para com a Nova Aliança do G8 para a Segurança Alimentar e Nutrição.
Para a mobilização contra o projeto-lei, prepararam-se brochuras que explicam as consequências da lei aos líderes comunitários e lideranças camponesas nas suas línguas locais. Esta mobilização social salienta o facto de as sementes pertencerem aos camponeses e camponesas coletivamente e que não sejam propriedade privada de ninguém. Em alternativa, os agricultores do Gana exigem programas públicos para garantir sementes de qualidade para cultivos indígenas, como feijão-frade, mandioca, arroz e coco. Em acréscimo, vários grupos de produtores (camponeses, camponesas) e aliados tencionam organizar projetos coletivos de acesso às sementes nas aldeias. Através desses projetos, os camponeses e camponesas terão acesso a variedades que desapareceram localmente, mas que poderão ainda estar a ser utilizadas nas zonas circundantes ou por agricultores de outras aldeias do Gana.
Mali: a privatização das sementes não serve aos camponeses e camponesas
Não são só os acordos internacionais, como a UPOV, que funcionam para beneficiar diretamente a indústria das sementes, impondo os direitos de propriedade intelectual reforçados pelo mundo fora. Esses esforços são apoiados por instituições com a mesma mentalidade, tais como o Banco Mundial. Em 2008, ao abrigo do Programa para a Produtividade Agrícola na África Ocidental, o Banco concedeu 50 milhões CFA (75000euros) ao Mali para desenvolver e “proteger” 50 variedades de cultivos. A ideia era levar os camponeses e camponesas a deixarem de utilizar as sementes tradicionais que são consideradas “retrogradas” e “de baixo rendimento”, encorajando a obtenção e produção de sementes melhoradas. Essas sementes seriam protegidas e os respetivos direitos traduzir-se-iam em receitas para o sistema de investigação pública do Mali.
Mas, os produtores são, na sua esmagadora maioria, camponeses que dependem das suas sementes e variedades locais, e iniciativas como esta não servem. Em 2012, o Mali já tinha certificados PVP em 50 cultivos, mas com uma utilidade pouco clara. O governo tem de pagar uma soma anual de 16,5 milhões CFA (25 000 euros) para manter os títulos de propriedade dessas sementes e isso é problemático porque as instituições do Mali quase não recebem rendimentos das colheitas. Por um lado, não se apresentaram empresas suficientes interessadas em reproduzir e comercializar as sementes. Por outro, poucos são os camponeses interessados em pagar preços elevados por sementes que requerem um alto insumo, como as híbridas, que não se enquadram nas suas terras de pequena escala e insumo reduzido. Para além disso, nalguns casos, os títulos PVP podem ser considerados biopirataria pura, uma vez que as colheitas são claramente variedades camponesas que ainda mantêm os seus nomes locais. (Foram concedidos certificados PVP, apesar de não se preencherem os critérios EUE — as variedade devem ser distintas, novas, uniformes e estáveis.) Dado que os títulos PVP são válidos nos 16 estados-membros que compõem a Organização Africana da Propriedade Intelectual (OAPI), os agricultores não só do Mali, mas também dos outros estados-membros da OAPI deixam de poder vender ou trocar as sementes dessas variedades camponesas. Os agricultores ainda podem reproduzi-las nas suas terras, mas única e exclusivamente para utilização própria. Essa situação pode piorar para os camponese e camponesas, porque a OAPI aderiu à UPOV em 2014.
Enquanto isso acontece, há muitos atores dedicados ao reforço dos sistemas das sementes industriais, promovendo, sobretudo, leis que permitem uma maior participação das empresas privadas em diversos aspetos da produção e comercialização das sementes. Esses esforços são sustentados por programas como a Alliance for a Green Revolution in Africa, apoiada pela Bill and Melinda Gates Foundation. As pequenas empresas de sementes que começam a surgir só servem para abrir caminho às grandes multinacionais, como a Monsanto, a Limagrain e a Syngenta. Entretanto, o grande problema dos camponeses do Mali é outro; em vez das sementes de quiabo, cebola, pepino, couve ou beringela para as quais só encontram poucas variedades de híbridos, querem diversificar os tipos de cultivos de que precisam em pequena escala. Trabalhando juntos em redes locais, desenvolveram novas variedades — e resgataram outras antigas — de cebolas, alface e de variedades autóctones de legumes, para além dos milhos-miúdos e sorgo locais.
O Mercado Comum para a África Oriental e Austral COMESA (Common Market for Eastern and Southern Africa), integra 20 países, da Etiópia à África do Sul. Segundo o tratado do COMESA, todos os países-membro têm de cumprir as normas comuns para a comercialização das sementes. Essas normas foram redigidas em 2013 e, se adotadas, permitirão às empresas certificar as suas sementes num país-membro e adquirir automaticamente o direito de as comercializar em todos os estados do COMESA. É uma ferramenta particularmente útil para a indústria das sementes, porque, eliminando as normas nacionais, facilita a comercialização das sementes numa boa parte da África. Será elaborado um catálogo comum, listando as variedades autorizadas em todos os países que terão de adotar o mesmo sistema de certificação. As leis das sementes do COMESA não preveem medidas para promover as variedades das sementes camponesas locais.
O COMESA também aprovou um projeto de diretrizes políticas para os OGM, numa medida que contorna as normas nacionais que regem os OGM em termos de comercialização, cultivo e ajuda alimentar. As organizações de camponeses e camponesas queixam-se de que essas diretrizes não derivam tanto dos estados-membro do COMESA mas mais de uma iniciativa de política biotecnológica financiada pelo governo norte-americano. O processo de redação foi dominado por especialistas formados pela USAID, sem ter em conta as vozes dos camponeses e camponesas e das organizações da sociedade civil. Para além disso, tal como as normas de comercialização das sementes, as políticas referentes aos OGM são de aplicação imediata em todos os países do COMESA, o que dificulta o combate às mesmas pelas organizações da sociedade civil, através dos governos nacionais, muitos dos quais já impõem normas relativamente rígidas.
Moçambique: os camponeses e camponesas resistem, desenvolvendo sistemas de sementes locais
Por detrás da nova Lei das Sementes a ser redigida em Moçambique está a Nova Aliança do G8 para a Segurança Alimentar e Nutricional que visa criar novas oportunidades para o agronegócio na África. Em geral, isso equivale a promover a produção de colheitas para gerar lucro que cumprem as exigências do mercado, em vez de suprirem as necessidades alimentares das comunidades locais. Significa também a promoção de sementes híbridas dispendiosas que requerem agroquímicos e que só se enquadram no contexto da produção de mercadorias para os mercados mundiais. Embora tenham pedido para serem incluídas no processo de redação da nova lei, as organizações de camponeses e camponesas são regularmente excluídas. Noutros casos, como o da redação de uma lei PVP, as organizações camponesas participaram no processo e explicaram ao governo os impactes negativos da lei nos camponeses moçambicanos, mas o governo ignorou as suas sugestões. Os esquemas de propriedade intelectual como as leis PVP são importantes para o objetivo das gigantes multinacionais de expandirem os OGM na África, onde a indústria quer evitar situações como a que se passou na América Latina. Aí, as empresas só tentaram estabelecer medidas locais para cobrar direitos depois de a utilização dos OGM se tornar generalizado — e tiveram um êxito limitado. Para além disso, Moçambique aprovou recentemente uma lei que facilita a entrada de OGM no país.
Nesta situação, os camponeses e camponesas de Moçambique decidiram fortalecer os seus próprios sistemas de sementes camponesas. Desde 2012 que trabalham com movimentos de camponeses do Brasil, aprendendo com a experiência deles no estabelecimento de sistemas de sementes (ver Brasil). A ideia por detrás desta colaboração era que os camponeses e camponesas do país pudessem aprender a selecionar e a multiplicar as sementes que considerarem importante ter em grande quantidade nas suas terras. Dado o êxito dos resultados, a iniciativa deveria ser alargada, com o apoio dos governos do Brasil, de Moçambique e da África do Sul. Mas o programa alargado já estava prestes a começar e só o governo brasileiro avançara com dinheiro e recursos para apoiar a iniciativas das sementes camponesas.
Enquanto desenvolvem os seus próprios sistemas de sementes, os camponeses e camponesas moçambicanos também exploram a possibilidade de propor uma lei a favor dos sistemas de sementes camponesas, seguindo o exemplo do Zimbabwe.
Níger: a vitória dos camponeses e camponesas contra a pirataria da cebola local
A cebola “violeta de Galmi” do Níger é uma variedade muito popular, não só no próprio país, onde herda o nome de uma aldeia do sudoeste, mas também por toda a África Ocidental. Há séculos, desde que chegaram à região, vindas do Egito, que estas cebolas vermelho-arroxeadas são amplamente apreciadas pelo seu sabor acentuado e as suas excelentes qualidades de conservação (aguentam vários meses no calor, sem se estragarem). Na década de 1990, a “violeta de Galmi” destacou-se rapidamente; ultrapassando as economias domésticas, tornou-se o segundo produto mais exportado no país, depois do urânio, e fez do Níger o maior exportador de cebolas da região inteira. Desse modo, seria um grande problema, se alguém reivindicasse a propriedade dessa variedade. Mas foi isso o que aconteceu recentemente.
Depois do seu êxito nas terras agrícolas camponesas, nos anos 1960, a cebola foi mais desenvolvida pelos investigadores públicos. Então, nos anos 1990, a Tropicasem, uma empresa de sementes privada do Senegal, subsidiária da empresa de sementes francesa, Technisem, desenvolveu ainda mais a cebola, com o objetivo de obter direitos de comercialização exclusiva dessa variedade. Nesse sentido, candidatou-se a um Certificado de Variedade Vegetal da OAPI, reivindicando a propriedade da popular cebola, e obteve direitos de propriedade exclusiva em todos os estados-membros da OAPI (ver mapa). Para além disso, uma iniciativa da FAO que resultara num catálogo comum para a comercialização das sementes na África Ocidental permitia à Tropicasem passar a ter direito de comercialização exclusiva da cebola em nove países. Quando se aperceberam de que uma empresa privada tinha reivindicado o direito de propriedade exclusiva sobre a sua cebola, os produtores do Níger sentiram-se ultrajados e pediram ao governo para os defender nesse caso de biopirataria. Após o conflito que se seguiu, a OAPI revogou o direito de propriedade exclusiva da cebola com o nome “violeta de Galmi”, mas permitiu à empresa manter esse direito sobre a cebola com o nome “violeta de Damani”. Foi uma vitória para os produtores de cebola, contra uma empresa que procurava monopolizar um dos seus cultivos mais importantes.
Ao mesmo tempo, os agricultores e vendedores em grande escala de cebola comercial que também foram afetados ficaram apreensivos e também quiseram proteger a “sua” cebola, candidatando-se a uma indicação geográfica (IG) — outra forma de propriedade intelectual semelhante a uma marca registada mas associada a um local de produção. Isso significa que, apesar de a produção da “violeta de Galmi” já se estender a todas as zonas da África Ocidental, só os agricultores da região de Galmi a podem vender com essa denominação. Até à data, isso não afetou os pequenos agricultores, porque a lei não é estritamente imposta. Os grandes produtores de cebola de Galmi não impõem a “sua” IG às aldeias vizinhas. E se decidirem fazê-lo? Desde 2004 que os pequenos agricultores da região se organizam para debater problemas como esse ao nível regional. Camponeses e camponesas tanto do Níger como do Benim, do Burkina Faso, da Guiné, do Mali, do Togo, da Guiné Bissau, da Costa do Marfim e do Senegal discutem alternativas para trabalharem em conjunto, respeitando os direitos de todos os produtores às suas sementes e colheitas, sem interferir na liberdade dos outros para as utilizarem.
Em vez de lidar com lento processo de lóbi de cada país africano, a indústria do agronegócio pressiona os organismos locais a adotarem leis com aplicação simultânea em vários países. Atualmente, estão pendentes dois projetos-lei que restringiriam os direitos dos produtores sobre as sementes em duas partes da África. O primeiro é o “Protocolo da SADC”, que afetaria 15 países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral. O segundo é uma “lei PVP da ARIPO”, aplicável a 18 estados anglófonos pertencentes à Organização Regional Africana da Propriedade Intelectual. Como já vimos, na África Ocidental, 17 países maioritariamente francófonos pertencentes à Organização Africana da Propriedade Intelectual (OAPI) já tinham uma lei de proteção das variedades vegetais baseada na UPOV ’91 desde 2006. (Ver mapa)
As propostas da SADC e da ARIPO para consolidar e harmonizar as leis das sementes seguem o modelo da UPOV ’91. Essas propostas criminalizariam os camponeses e camponesas que troquem ou vendam sementes protegidas por certificados PVP, mesmo em pequenas quantidades e para utilização local. No caso da SADC, os camponeses e camponesas teriam de pagar ao obtentor pela simples recolha e reutilização das sementes originárias dessas colheitas, nas suas próprias terras. Os agricultores nos estados da ARIPO também teriam de pagar e só o poderiam fazer com determinadas colheitas. Caso estas leis sejam adotadas, as empresas das sementes deixam de ter a obrigação de declarar a origem das sementes que registam como “novas” variedades, aumentando, assim, as hipóteses de biopirataria.
Embora existam cada vez mais coligações, incluindo grupos da sociedade civil, nas sub-regiões e por toda a África, são necessárias campanhas mais fortes, bem como mais trabalho e ações de solidariedade para impedir que tais propostas se tornem leis.
Tanzânia: Criminalização da partilha das sementes camponesas
Como parte dos seus compromissos para com a Nova Aliança do G8 (ver caixa), em 2012, o governo tanzaniano aprovou uma Lei sobre os Direitos dos Obtentores de Plantas. A lei vai para além dos requisitos da UPOV ’91. A utilização e troca das chamadas sementes protegidas sem autorização do obtentor deixa de ser regida pelo código civil e passa a estar sob a égide do código penal. Isso significa que, para além de estarem sujeitos ao pagamento de multas, os camponeses e camponesas também estarão sujeitos a penas de prisão. Uma vez que a lei se aplica às sementes industriais, excluindo as camponesas, o governo da Tanzânia tranquiliza os agricultores, assegurando-lhes que essa lei não lhes é aplicável. As organizações de agricultores, porém, afirmam que a lei se enquadra num projeto mais amplo, contra a agricultura camponesa e a favor da privatização dos recursos dos camponeses, incluindo a terra e as sementes. E, num contexto que favorece a crescente industrialização dos meios de produção, quanto mais poder ganharem as empresas de sementes privadas que promovem essas variedades, mais dificuldade terão os produtores de evitarem a utilização das sementes industriais. Atualmente, contudo, ainda existem 4,8 milhões de camponeses na Tanzânia — um número quase cinco mil vezes superior ao dos agricultores industriais —, perfazendo mais de metade da população do país.
Em acréscimo, a Lei das Sementes de 2004 — referente à comercialização — está também em processo de revisão, sob pretexto de trazer “sementes de qualidade” para o mercado. À semelhança do que acontece noutros países, a qualidade das sementes é um problema real na Tanzânia. Há muitas pessoas a vender grãos de sementes mal selecionadas que germinam mal. No entanto, esse é um problema maior para a indústria das sementes cuja cota de mercado sofre a ameaça dos falsos vendedores de sementes. Tradicionalmente, os camponeses e camponesas mantêm as suas sementes nas suas próprias terras ou aldeias. Quando existe alguém numa aldeia com capacidade para selecionar e armazenar grandes quantidades de sementes para partilhar ou vender, não há risco de surgirem esquemas fraudulentos, porque as pessoas se conhecem umas às outras e sabem de onde vêm as sementes. As novas revisões ilegalizam precisamente esse tipo de partilha e venda local de pequenas quantidades de sementes, pois só permite a comercialização de sementes certificadas. Ao abrigo da nova lei, o governo ainda permite que os camponeses vendam sementes não certificadas de uma variedade conhecida numa área limitada de duas a três aldeias. Para além disso, já existe um sistema governamental de certificação das sementes. Embora esse sistema alternativo implique muita burocracia, algumas organizações camponesas e ONGs utilizam-no para reintroduzir variedades descobertas em bancos de sementes e devolvê-las aos agricultores. Com esta nova lei, é bem provável que isso deixe de ser possível.
As organizações de produtores da Tanzânia trabalham em conjunto para contrariar este massacre de leis. Juntam-se para trabalhar não só na questão das sementes, mas também na resistência contra a privatização dos recursos dos camponeses e camponesas, especialmente a terra.
A Nova Aliança do G8 para a Segurança Alimentar e Nutrição foi lançada em 2012, com o objetivo de reformar a agricultura africana, promovendo o investimento no setor privado. Conta com a participação de dez países africanos (Etiópia, Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana, Moçambique, Tanzânia, Benim, Nigéria, Malawi e Senegal) e quase $1 mil milhões dos países e empresas do G8 (incluindo a Yara, a Monsanto e Syngenta). Para receberem esses fundos, os governos africanos têm de alterar as leis que regem a propriedade das sementes e da terra, para que estas passem a proteger os investidores. Por exemplo, Moçambique tem de “travar sistematicamente a distribuição gratuita de sementes não melhoradas” — ou seja, das variedades camponesas — e de aprovar uma lei PVP que “promova o investimento do setor privado na produção de sementes”. Todos os países participantes são obrigados a fazer mudanças igualmente radicais. Mas as sementes camponesas não são o único alvo. A terra agrícola de propriedade consuetudinária está também a ser privatizada, através de novas normas de titulação da terra, e arrendada às empresas participantes. Por exemplo, o governo do Malawi comprometeu-se a disponibilizar 200 000 hectares da melhor terra agrícola aos investidores participantes, até 2015.
3. As Américas: Resistência maciça contra as “leis da Monsanto”
A América Latina talvez seja a região onde a mobilização social para travar a criminalização das sementes camponesas através das leis das sementes é atualmente mais dinâmica. São cada vez mais as campanhas em vários países para travar aquilo que é inevitavelmente identificado como as “leis da Monsanto” e promover os sistemas das sementes camponesas e indígenas. Por vezes, como é o caso da Venezuela, os esforços traduzem-se em iniciativas legais (leis alternativas). Em todos os casos, as sementes nunca são o único alvo. Essas lutas fazem parte dos esforços crescentes para defender ativamente os territórios e a soberania alimentar, contra um massacre de pressão das empresas do agronegócio e dos governos que as apoiam.
Na América do Norte, onde a agricultura industrial é norma, as organizações de agricultores e os movimentos sociais também se empenham vigorosamente, tanto na prevenção do fortalecimento das leis que impõe a privatização das sementes como para conseguir apoio para os sistemas alimentares comunitários locais onde as sementes camponesas podem florescer.
Brasil: Desenvolvimento em grande escala das sementes crioulas
Ao fim de décadas de luta dos agricultores brasileiros pelo acesso à terra e pela soberania alimentar, adotou-se uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Biológica que reconhece explicitamente o papel das próprias sementes “crioulas” dos camponeses. Para além disso, em 2003, foi instituído um Programa nacional para a Aquisição Alimentar que proporciona aos agricultores brasileiros um meio importante para desenvolver os seus próprios sistemas de sementes. Embora a venda de sementes não certificadas seja ilegal no Brasil, através deste programa, o governo compra as sementes crioulas diretamente de uns agricultores e fornece-as gratuitamente a outros, contornando o mercado.
Em resultado, algumas das maiores organizações de camponeses do país puderam desenvolver os seus próprios sistemas de sementes. Estas organizações não só promovem a seleção e a utilização das sementes camponesas pelas famílias e desenvolvem casas de sementes comunitárias, como também criam programas em grande escala para proporcionar sementes a centenas de milhares de famílias. Para além das 7 000 toneladas de sementes de milho, feijões e forragem produzidas por mais de 2000 agricultores de pequena escala membros de um movimento, em 2013, foram produzidas 800 toneladas de sementes de feijão preto e enviadas a camponeses da Venezuela. Embora se tenha avançado muito no sentido de assegurar as sementes crioulas necessárias aos agricultores em pequena escala, a defesa das políticas pró-camponeses é uma luta constante. O governo norte-americano queixou-se, por exemplo, de que o programa de aquisição alimentar contraria as regras da OMC, por conceder subsídios aos agricultores brasileiros.
Outra grande luta para os agricultores brasileiros é contra os OGM e as substâncias químicas tóxicas que lhes estão associadas. O Brasil é o segundo maior produtor de OGM no mundo, com mais de 40,3 milhões de hectares de produção, em 2013. Em Outubro de 2013, 5000 camponeses brasileiros ocuparam uma fábrica de produção de sementes da Monsanto no estado nordestino de Pernambuco e substituíram as variedades de milho GM que aí se produziam por sementes crioulas. Em resultado, alguns foram processados e estão proibidos de se aproximarem das instalações da Monsanto do Brasil inteiro. Os camponeses brasileiros também lutam contra uma lei que está a ser analisada que levantaria a moratória do país sobre um tipo muito perigoso de OGM conhecido como “Exterminador”.
Chile: Vitória contra a privatização das sementes
Após quatro anos de mobilização, em 2014, os Chilenos celebraram uma vitória contra uma lei PVP que privatizaria as sementes camponesas de acordo com a UPOV ’91. Desde 2010 que as organizações de camponeses e os movimentos sociais se esforçavam por contrariar as reivindicações do governo e da indústria a favor dessa lei — e, especialmente, a ideia de que, sem ela, a segurança alimentar dos Chilenos corria perigo. Os camponeses e as organizações ambientais não só explicaram as consequências dessa “lei da Monsanto”, como também informaram de como estava a ser resistida noutros países, desde a Colômbia, à França.
No Chile foi uma longa batalha. Os lobistas da indústria tentaram diversas vezes pressionar o parlamento nacional a aprovar a lei. Conseguindo protelar o projeto-lei e voltar a opinião pública contra ela, a rede de movimentos sociais continuou a crescer e expandiu-se a nível nacional. A resistência traduziu-se em manifestações; campanhas mediáticas na Internet, na rádio e na televisão; workshops nas comunidades urbanas e rurais; e reuniões com líderes religiosos e oficiais do governo, muitos dos quais passaram a opor-se à lei. Apesar de terem conseguido que a lei fosse retirada, as organizações de camponeses e os movimentos sociais permaneceram em alerta. Dada a sua localização e dado o seu clima, o Chile é um dos principais pontos de produção e exportação de sementes industriais. Isso significa que sofre muita pressão dos Estados Unidos e da Europa para aplicar leis que protejam vigorosamente os interesses da indústria das sementes.
Colômbia: Protestos maciços pelas sementes camponesas e a soberania alimentar
Em agosto de 2013, organizações camponesas colombianos organizaram uma greve maciça a nível nacional. Bloquearam estradas, despejaram leite nos carros e deixaram essencialmente de produzir alimento para as cidades. O problema? As políticas governamentais estão a acabar com os camponeses e camponesas.
O estado quase não apoia o sector da agricultura em pequena escala, preferindo promover o modelo socioeconómico que serve os interesses de uma elite abastada em minoria. Os recentes acordos de livre comércio (ALC) assinados com os EUA e a UE permitem a entrada de produtos a preços inferiores aos praticados pelos produtores colombianos que se veem incapazes de competir com importações subsidiadas.
A greve dos camponeses e camponesas não tardou a receber o apoio de milhares de pessoas de outros sectores da sociedade: trabalhadores da indústria petrolífera, mineiros, camionistas, profissionais do sector da saúde, estudantes e outros. A resposta do governo foi caótica e contraditória. As forças de segurança pública reprimiram violentamente muitos protestantes, para não falar nos jornalistas.
A questão das sementes ganhou destaque na greve. Sob os ALC assinados com Washington e com Bruxelas, Bogotá é obrigado a ceder direitos de monopólio sobre as sementes vendidas pelas empresas americanas e europeias, para as incentivar a investir na Colômbia. Os camponeses apanhados a vender sementes dessas variedades que tenham armazenado nas suas terras, ou simplesmente sementes indígenas que não tenham sido formalmente registadas, estão sujeitos ao pagamento de multas ou, até, a penas de prisão.
Em 2011, as autoridades do governo colombiano tomaram de assalto armazéns e camiões de agricultores de arroz de Campo Alegre, na província de Huila, destruindo violentamente 70 toneladas de arroz sob o pretexto de não ter sido processado de acordo com a lei. Essa intervenção militarizada para destruir as sementes dos camponeses chocou muitas pessoas e inspirou uma jovem ativista chilena, Victoria Solano, a fazer um filme sobre isso. O filme intitula-se "9.70", o nome da lei adotada em 2010 que dá ao estado autoridade para destruir as sementes dos camponeses e camponesas que não preencham os requisitos da lei colombiana.
A pressão social foi tal que o governo acabou por declarar a suspensão da lei por dois anos. No entanto, para além de não ter sido suspensa, a lei está a ser simplesmente alterada. Apesar de, em boa parte, a linguagem mais severa tenha sido substituída por um discurso mais subtil, o conteúdo permanece o mesmo. A principal exigência do povo colombiano ainda não foi satisfeita: a rejeição pura e simples da resolução é de quaisquer tentativas de impor a UPOV 91 por outros canais.
Em acréscimo, a nova política que supostamente deveria promover a “agricultura familiar” não passa de um lobo na pele do cordeiro. Só serão apoiados os agricultores que alterarem os seus métodos de produção para se “tornarem mais competitivos”, o que significa que têm de comprar insumos industriais, como sementes, fertilizantes e pesticidas.
Costa Rica: Grandes mobilizações põem a UPOV na boca do mundo
Em 1999, o governo da Costa Rica ponderava uma forma de alterar as suas leis para as conformar com as orientações da OMC relativas aos direitos de propriedade intelectual. Cientes dos efeitos negativos da privatização das sementes noutros países, organizações da sociedade civil pressionaram o governo contra a implementação dessas alterações à legislação costa-riquenha. Tiveram êxito durante alguns anos e chegaram mesmo a apresentar uma proposta de lei alternativa que reconheceria o trabalho dos obtentores vegetais, sem interferir nos direitos dos camponeses e povos indígenas. Em vez dos critérios EUE, as novas variedades teriam de respeitar as necessidades dos camponeses e da agricultura indígena (indicadas num rótulo especial). E seria proibida qualquer medida que pudesse impedir os camponeses e camponesas de reutilizar livremente as sementes que tivessem comprado.
Mas a situação mudou drasticamente, uns anos depois, com o arranque das negociações de comércio livre entre a América Central e os EUA. Nesse acordo, o governo costa-riquenho teria de alinhar as suas leis com diversos tratados de propriedade intelectual, entre eles a UPOV ’91. Essa e muitas outras disposições do ALC proposto suscitaram muita resistência na Costa Rica. Grupos de camponeses e os seus aliados puseram a UPOV ’91 na boca do mundo, organizando centenas de reuniões nas comunidades, nas igrejas, nas escolas e nas universidades, para explicarem as consequências da UPOV ’91. A resistência foi tão forte que, mesmo depois de todos os outros estados da América Central já terem ratificado o CAFTA, os movimentos sociais costa-riquenhos conseguiram obter um referendo para decidir se o país deveria ou não assinar. Infelizmente, quando se realizou o referendo em 2007, a parte a favor do CAFTA conseguiu manipulá-lo injustamente e, um ano depois, a Costa Rica aderiu à UPOV.
As agressões jurídicas continuaram, na Costa Rica, mas a luta também. A mobilização dos camponeses e das organizações da sociedade civil travou com êxito uma proposta de lei que visava ilegalizar a comercialização de sementes que não satisfizessem os critérios industriais dos EUE. De acordo com essa proposta de lei, muito embora pudessem ser isentadas, as variedades camponesas teriam sempre de ser registadas junto do Gabinete Nacional das Sementes. Os agricultores opuseram-se, considerando que as suas comunidades corriam o risco de serem sujeitas a mais controlos e de ficar à mercê da biopirataria. Apesar de terem conseguido travar essa lei, as organizações permanecem em alerta máximo, sabendo que toda a América Latina sofre uma pressão imensa para se alterarem as leis das sementes de modo a alinhá-las com os interesses da indústria.
Por fim, outra batalha importante na Costa Rica é a que se trava contra os OGM que aí se estão a cultivar nos últimos 15 anos. Embora, hoje em dia, os OGM já “só” ocupem 3000 hectares, o impacto dessa produção é acrescido pelo facto de a terra em questão ser utilizada para produzir sementes OGM para serem vendidas noutros países da América Central. Contudo, graças à resistência dos camponeses e de outros movimentos sociais, neste momento 77% do território nacional já foi declarado livre de OGM, o que significa que 63 das 81 municipalidades se serviram da autonomia local de que gozam ao nível municipal para proibir os OGM. Para além disso, as organizações sociais estão já a fazer pressão para se aprovar uma lei que declare uma moratória nacional às colheitas de OGM.
El Salvador: Os acordos de comércio livre a favor da Monsanto
Nos últimos anos, El Salvador adotou um Programa de Agricultura Familiar (Plan Agricultura Familiar) que inclui uma política de distribuição local de milho e feijão aos agricultores de pequena escala. Quatrocentos mil agricultores beneficiaram desse programa popular em 2013. No entanto, a iniciativa gerou dificuldades com o governo norte-americano pois contraria o acordo de livre-comércio EUA—América Central.
Em 2014, El Salvador deveria receber $277 milhões da agência de ajuda externa do governo dos EUA, a Millennium Challenge Corporation (MCC). O representante norte-americano para o Comércio na direção da MCC, porém, bloqueou a verba, dizendo que El Salvador infringia as normas do CAFTA, adquirindo sementes para o Programa de Agricultura Familiar sem passar por um processo transparente de concurso público. Em suma, os EUA queriam que a Monsanto participasse na ação. Anteriormente, o governo de El Salvador tentara efetivamente comprar as sementes à Semillas Cristiani Burkard, uma subsidiária da Monsanto, mas acabara por recorrer antes às cooperativas nacionais de agricultores.
Seguiram-se protestos tanto em El Salvador como nos EUA. As pessoas não queriam que os EUA pressionassem El Salvador em prol da Monsanto — à custa de desprover os agricultores locais da sua fonte de rendimentos. De repente, tudo o que os movimentos sociais que se opunham ao CAFTA tinham dito, defendendo que o negócio contrariava os interesses do país, já parecia ser verdade.
O facto é que a Monsanto tinha licitado o contrato para fornecer sementes em 2013. Contudo, em 2014, não havia tempo suficiente, antes das épocas de plantação, para se organizar um concurso público de acordo com todas as regras. O decreto temporário que regia a compra desse ano só estipula que as sementes tinham de ser produzidas em El Salvador. Aparentemente, a oposição apresentada pelo representante americano do comércio era infundada. Washington acabou por retirar as suas objeções à atribuição da subvenção da MCC.
Embora o Programa de Agricultura Familiar não promova a produção e distribuição de variedades camponesas, o conflito de $300 milhões com Washington foi uma chamada de atenção para a forma como se podem utilizar os acordos de livre comércio para prejudicar as políticas das sementes e o leque de opções.
México: A luta popular contra o milho GM
Um dos ataques mais graves que os agricultores mexicanos enfrentam atualmente é a pressão para introduzir OGM no país e, muito particularmente, milho. O milho é, de longe, o cultivo mais importante para os mexicanos, não só porque é a base da sua alimentação, mas também porque assume um papel central na cultura e na vida das comunidades indígenas. Embora o México seja apresentado como um exemplo extraordinário de modernização agrícola graças à Revolução Verde, 80% do milho cultivado no país deriva das sementes indígenas que os agricultores mexicanos continuam a utilizar. Isso, apesar dos 20 anos de dura imposição do modelo de agricultura industrial e privatização de recursos do Acordo de Livre Comércio com a América do Norte.
A nível federal, em 1999 levantou-se uma moratória efetiva que proíbe a atribuição de licenças para o cultivo de OGM no país. Em 2005, porém, aprovou-se uma lei de biossegurança negativa que legitima os OGM, instaurando uma série de procedimentos burocráticos para as empresas que queiram plantar OGM para fins comerciais. À lei da biossegurança, popularmente conhecida como “Lei da Monsanto”, seguiu-se, em 2007, uma Lei Federal para a Produção, Certificação e Comercialização das Sementes. O verdadeiro propósito dessa lei era criminalizar a troca livre de sementes indígenas. Em 2009, um decreto presidencial acabou com a moratória e anunciou a atribuição de licenças. Isso levou a atribuição de 155 licenças para o cultivo experimental de milho às empresas multinacionais Monsanto e Dow.
Os mexicanos lutam em todas as frentes, para defender o seu milho. Desde que se provou, em 2001, que as importações dos EUA já haviam contaminado o milho indígena do México que as comunidades agrícolas passaram a prestar mais atenção à qualidade e à origem das sementes que utilizam. Tentam ao máximo evitar a contaminação das variedades GM que temem poder ser introduzidas através dos programas de sementes governamentais, tais como os programas que encorajam os camponeses e camponesas a trocar as suas sementes indígenas por espécies híbridas comerciais.
Quando se anunciou que as empresas procurariam produzir OGM comercial em grande escala (numa área de mais de 4 milhões de hectares — tão vasta como a do território do país El Salvador), iniciou-se uma grande mobilização. Formaram-se alianças entre as comunidades camponesas, os povos indígenas, os sindicatos, os círculos académicos, os grupos urbanos e outros, visando alertar o público para a ameaça da contaminação do milho na própria zona de origem mundial. No âmbito dessa mobilização, os camponeses organizaram uma greve de fome na primavera de 2012.
Por fim, desde 2013, que as organizações de agricultores se coligaram com os aliados para instaurar um processo jurídico. Os seus esforços resultaram numa decisão jurídica que travou, pelo menos por agora, a produção comercial de milho GM.
Muitas comunidades de camponeses e indígenas decidiram defender o seu milho, estabelecendo acordos ao nível comunitário e das assembleias ejidais (ejidos são as propriedades coletivas legado do processo de reforma fundiária que se seguiu à Revolução Mexicana). A constituição mexicana reconhece a utilização desses acordos para proteger a terra e os recursos das 31 000 comunidades e ejidos de propriedade coletiva em grande escala do México. Mas muito para além da possibilidade de serem utilizados como ferramenta legal no futuro, esses acordos comunitários e ejidais servem como um processo de debate e organização, consolidando a defesa das sementes camponesas locais, consideradas indissociáveis da vida, dos conhecimentos e das culturas das diversas populações.
A mais recente medida tomada na mobilização mexicana em defesa das sementes foi um julgamento de três anos contra o estado mexicano, no Tribunal Popular Permanente (2012-2014).
Estados Unidos: Um cocktail de leis restritivas e práticas intimidatórias
O sistema legal americano permite diversas ferramentas para a reivindicação de direitos de propriedade sobre as sementes, sendo as patentes a mais vulgar. Uma semente pode até estar sujeita a várias patentes diferentes, à lei da Proteção das Variedades Vegetais e a acordos de licenciamento exclusivos — tudo ao mesmo tempo! Hoje em dia, inclusivamente, há novas variedades de cultivos populares que têm marca registada. E, como se isso não bastasse para garantir lucros aos monopólios, existem novos esquemas como o dos “clubes” em que produtos como as maçãs só podem ser cultivados pelos seus membros, permitindo a prática de preços elevados e um controlo apertado do mercado. Perante esta situação, não é de admirar que os agricultores se sintam intimidados e se sintam coagidos a comprar sementes industriais todos os anos, com medo que os acusem de transgredir a lei. Para além disso, este problema não afeta apenas os agricultores, alargando-se aos obtentores, investigadores e organizações de sementes que quiserem desenvolver trabalho na área das sementes.
Para comprarem sementes, os agricultores têm de assinar contratos extensos conhecidos como “contratos de utilização tecnológica”. Esses contratos proíbem os agricultores de guardar sementes e, entre outras disposições intrusivas, permitem o acesso das empresas aos dados dos agricultores detidos por terceiros, como o governo americano. Em 2003, a Monsanto já tinha um departamento com 75 funcionários e um orçamento de $10 milhões, unicamente dedicado a instaurar processos de violação de patentes a agricultores. Em Dezembro de 2012, a Monsanto tinha instaurado 142 processos jurídicos de alegada violação de patente a 410 agricultores e 56 negócios agrícolas de pequena escala, em 27 estados, com os quais ganhou mais de $23,5 milhões.
A Monsanto, contudo, não é a única multinacional a utilizar táticas alarmistas. A segunda maior empresa de sementes do mundo, DuPont, contratou pelo menos 45 inspetores em 2012 para analisarem os registos de plantação e compra dos agricultores canadianos e para extraírem amostras dos seus campos para testes genéticos. Em 2013, a DuPont alargou a sua operação nos EUA, contratando cerca de 35 investigadores, muitos dos quais, antigos agentes da polícia. Com as suas leis restritivas e empresas agressivas, os EUA estão prestes a tornar-se um estado-polícia do género do “grande irmão que tudo vê”, a controlar tudo o que os agricultores fazem às suas sementes.
No que se refere às leis de comercialização das sementes, os Estados Unidos são uma exceção, porque, ao contrário do que acontece em quase todos os outros países, não exige a certificação das sementes comercializadas. Desse modo, apesar da tremenda concentração da indústria que serve o agronegócio americano de grande escala, as pequenas iniciativas e empresas de sementes podem desenvolver variedades não-híbridas. No entanto, dada a agressiva cultura de propriedade intelectual dos EUA, não é fácil distribuir, reutilizar e trocar essas sementes, sem correr o risco que terceiros se apoderem delas e as patenteiem. Uma abordagem para resolver esse problema é criar contratos de licenciamento que disponham os termos em que essas sementes podem ser utilizadas para fins comerciais e incluam a proibição expressa de reivindicar as sementes como propriedade privada, excluindo o seu uso por terceiros. Outra é desenvolver sistemas de biblioteca e redes de sementes de circuito fechado.
Venezuela: Lei de defesa das sementes camponesas, da base para o topo
O parlamento venezuelano deverá votar uma lei nacional das sementes em breve. Essa lei, contudo, difere da maioria das leis propostas noutros países, porque foi promovida e acordada por centenas de movimentos sociais, incluindo camponeses, conservadores de sementes, organizações ambientais, coletivos comunitários, investigadores e redes agro-ecológicas. O projeto teve início em 2012, quando o movimento de oposição aos OGM se apercebeu da necessidade de se criar uma lei mais forte para proibir a entrada de transgénicos no país. Com o tempo, a sua visão expandiu-se para incluir a defesa e a promoção das sementes camponesas, no âmbito de uma estratégia que vise um novo modelo de produção com base na agricultura sustentável e na soberania alimentar.
A nova lei propõe-se substituir a lei de 2002 em vigor e resulta de uma série de consultas populares — processo formal de criação de leis reconhecido na Venezuela. Realizaram-se cinco consultas nacionais no seu todo, entre Outubro de 2013 e Junho de 2014, para além de muitas locais, com a participação de cerca de 250 organizações.
O projeto lei proposto estipula que as sementes são organismos vivos cujos direitos devem ser reconhecidos. A constituição venezuelana de 2009 proíbe o patenteamento e a proteção de variedades vegetais das sementes. Preveem-se normas comerciais para as “sementes agroindustriais” mas não para as variedades locais; “deverão ser rejeitadas todas as variedades agroindustriais que representem riscos para a soberania alimentar ou o ambiente”. Em acréscimo, o projeto-lei propõe um papel central para as sementes locais nas mãos das pessoas (poder popular) como guardiãs (garantes) das “sementes locais, camponesas, indígenas e afrodescendentes”. Reconhece explicitamente o conhecimento e as práticas tradicionais de seleção das sementes cuja privatização proíbe expressamente. Da mesma forma, reconhece o conucos — um sistema agrícola de policultura — como espaço de conservação da biodiversidade. Por fim, proporciona mecanismos claros para a proibição dos OGM, estabelecendo o modo de detecção da sua presença e as sanções impostas à sua utilização.
Para defender as sementes nas mãos das comunidades locais, o projeto-lei estipula um sistema de “licenças para sementes livres”, com base num quadro legal de propriedade “social” (ou seja, coletiva). O projeto-lei concede ao utilizador da semente o direito de saber de onde ela vem e como está a ser utilizada pelas outras pessoas. Sob esta licença, a semente pode continuar a ser selecionada ou obtida, desde que não ponha em perigo a saúde dos seres humanos ou da biodiversidade. Mas quem quiser obter novas variedades a partir das “sementes livres” tem de explicitar publicamente os processos que tenciona realizar e as suas possíveis consequências. A licença também define as sementes como bem público de utilização livre que, como herança coletiva do conhecimento e das práticas dos camponeses, dos povos indígenas e dos afrodescendentes, não pode ser privatizado. O projeto-lei estabelece que as autoridades locais devem supervisionar a utilização das sementes camponesas, tomar decisões e implementar políticas a favor da diversidade agrícola local e da agroecologia. Para além disso, inclui um Plano Popular de Sementes (plan popular de semillas) tanto para resgatar e desenvolver as variedades camponesas como para impor novos padrões de qualidade baseados na agroecologia e num alto nível de biodiversidade.
Não se sabe ao certo como o novo projeto-lei será redigido e passado a lei, nos próximos meses. Muitas das grandes federações que representam o agronegócio venezuelano denunciam a sua intenção de restringir os direitos de propriedade sobre as sementes e de proibir os OGM. Mas a lei conta com o apoio de um forte movimento capaz de mobilizar uma extensa coligação. Devido à ampla participação social e ao processo consultivo, para além de ganhar uma visibilidade e uma legitimidade significativas, a lei também pôs as sementes no centro do debate mais lato acerca do bem-estar de toda a população. O movimento trabalha igualmente pela reorganização completa da produção, com vista a promover a agroecologia e a soberania alimentar em geral. Desse modo, pretende tornar a vida rural uma alternativa viável para os jovens das cidades, aumentar a produção alimentar local e reduzir a importação de alimentos.
4. Ásia: A luta contra uma nova vaga de sementes industriais
A Ásia sofreu muito com a Revolução Verde que, entre os anos 1960 e os anos 1980 substituiu as sementes camponesas pelas chamadas variedades de alto rendimento, em diversos cultivos. Desde a década de 1990 que a região é alvo tanto dos produtores de sementes GM ocidentais, como das empresas de arroz híbrido da China que tentam ganhar mais poder, pelo controlo do fornecimento das sementes. Os governos, as empresas e as fundações que impõem essas sementes também pressionam a região a alterar as suas leis das sementes. Para isso, é preciso levar os países asiáticos a adotar a legislação do patenteamento e da PVP das sementes, bem como os sistemas de certificação das sementes. Mas a resistência tem sido muita. Em resultado, poucos países asiáticos aderiram à UPOV e poucos permitem a utilização de sementes GM. Não obstante, a pressão para conceder direitos de propriedade sobre as sementes às empresas e para permitir os OGM continua, especialmente por meio de acordos de livre comércio.
Índia: A defesa da soberania das sementes
Os vários ataques que a agricultura camponesa da Índia sofreu gerou mobilizações maciças nos últimos anos. Os agricultores protestaram contra as sementes de algodão GM impostas através de uma publicidade agressiva e que só resultaram em fraudes e endividamento. Protestaram contra uma PVP de 2001 e uma Lei dos Direitos dos Agricultores que penalizava a troca de sementes. Nos últimos dez anos, conseguiram empatar um Projeto-lei das Sementes que penalizaria a comercialização local das sementes pelos camponeses, obrigando-os a registar todas as variedades. Mais recentemente, os agricultores agiram contra a criação de registos locais de biodiversidade, a serem instituídos pelo governo, ao abrigo da Lei da Diversidade Biológica de 2002.
Teoricamente, seria boa ideia estabelecer um Registo Popular da Biodiversidade, para ajudar as comunidades locais a conservar o conhecimento sobre as qualidades e as utilizações das suas sementes locais. No entanto, muitos camponeses e camponesas rejeitam a ideia, alegando que estes visam documentar o seu conhecimento e as suas sementes fora do seu controlo e passar as bases de dados eletrónicas para as mãos de “especialistas” de fora das aldeias. Alguns manifestaram o receio de esses registos fomentarem a biopirataria, dando aos investigadores e à indústria acesso às sementes e aos conhecimentos dos camponeses que podem servir de base para a criação de variedades industriais ou medicamentos patenteados. Em resultado, em 2004 fizeram-se protestos populares e vários milhares de gram panchayats (autoridades governamentais das aldeias) recusaram-se a participar nos registos.
A Lei da Biodiversidade também inclui uma norma controversa sobre o acesso e a partilha dos lucros, pois declara que os agricultores que deem as suas sementes ou plantas aos investigadores para desenvolvimento e comercialização poderão reivindicar pagamento. Algumas comunidades concordam com esta disposição, mas outras discordam, defendendo que se rejeitam a privatização das suas sementes, também devem rejeitar quaisquer lucros que esta possa implicar.
Para além das lutas contra essas leis, contudo, os camponeses e camponesas continuam a fazer as suas práticas de tratamento e defesa das suas sementes. Por exemplo, há uma rede nacional de conservadores de sementes que se reúne todos os anos e organiza caravanas para distribuir sementes. Devido à Revolução Verde, já só restam 1% das 200 000 variedades indianas de arroz, e é por isso que tantas iniciativas apostam no cultivo das variedades de arroz locais. Outro cultivo fulcral é o de millet, que a Revolução Verde substituíra por colheitas de alto rendimento, como o trigo, o arroz e a cana-de-açúcar. Hoje em dia, nas zonas áridas, os millets correm o perigo de serem substituídos por milho, uma semente que, na Índia, é largamente controlada pelas empresas internacionais como colheita-mercadoria. Os agricultores do sul da Índia apostam na riqueza do raagi, um tipo de millet indiano. Embora mercado comercial para os milhares de variedades de raagi, os camponeses apreciam-no pelo seu alto valor nutricional e as suas qualidades medicinais. A defesa das sementes faz parte da defesa da agricultura tradicional, o que significa que a soberania das sementes é fundamental para a soberania alimentar.
Indonésia: Prisão para os camponeses que produzem sementes
Há mais de dez anos que os agricultores indonésios de Java Oriental são criminalizados por alegadamente infringirem os direitos de uma empresa chamada BISI, subsidiária da empresa de sementes tailandesa, Charoen Pokhpand. Embora a BISI não tenha apresentado quaisquer provas, os camponeses foram levados a tribunal e 14 foram alvo de processos; alguns foram até condenados a cumprir breves penas de prisão. Na maioria dos casos, esses camponeses não tinham advogado que os representasse, nem compreendiam o que tinham feito de errado.
Eles faziam experiências, selecionando e cruzando diferentes variedades de milho cujas sementes vendiam ocasionalmente aos vizinhos. Alguns dos camponeses identificados tinham trabalhado a contrato para a BISI, uns anos antes, e esse facto dava alguma plausibilidade à acusação da empresa de que eles lhe teriam roubado sementes e técnicas de obtenção. No fundo, as acusações serviam para passar uma mensagem de intimidação muito clara aos camponeses — que não selecionassem nem partilhassem as suas sementes e que só comprassem sementes à BISI. O mesmo está agora a acontecer no norte da Tailândia.
Sob a Lei do Cultivo das Plantas de 1992, o primeiro agricultor foi condenado por reproduzir e distribuir sementes em 2003. Após anos de luta das organizações de camponeses e de apelos ao governo a nível local e nacional, formou-se uma coligação de grupos que, por fim, levou o caso ao Tribunal Constitucional. Defendiam que a lei tratava injustamente os camponeses, colocando-os ao mesmo nível que uma grande empresa de sementes. Finalmente, em 2013, o tribunal declarou a lei de 1992 inconstitucional. O artigo 33º da constituição indonésia estipula que todos os recursos naturais essenciais para a subsistência das pessoas, como as sementes, devem ser geridos pelo estado — o que significa que a privatização é ilegal. Em consequência, o tribunal decretou que os camponeses já não precisariam de licença para reunir, reproduzir ou distribuir as sementes locais.
Apesar dessa vitória, existem outras leis escritas que ainda sustentam a propriedade privada das sementes. Por exemplo, ao abrigo da Lei de Proteção das Variedades Vegetais da Indonésia de 2000, os camponeses incorrem em penas de prisão de até cinco anos e no pagamento de multas de até mil milhões de rupias (65 000 euros) se forem apanhados a utilizar as sementes protegidas das empresas sem licença. Em resultado, as organizações camponesas indonésios continuam a criticar muito a lei da PVP, que o governo é obrigado a manter, no âmbito do Acordo TRIPS da OMC. Até agora, contudo, nenhum camponês foi processado com base nessa lei.
Filipinas: As falsas promessas de “Arroz Dourado”
As leis da biossegurança deveriam supostamente proporcionar um quadro de medidas de prevenção e regulação do uso de OGM. No entanto, em geral, têm surtido o efeito contrário, legitimando o avanço dos OGM, ou sendo implementadas de forma seletiva. Nas Filipinas, isso torna-se evidente no caso do “Arroz Dourado”, um arroz GM modificado para conter betacaroteno que, quando ingerido, se transforma em vitamina A. No caso da beringela GM, o Supremo Tribunal das Filipinas decidiu recentemente a interrupção dos testes no terreno, considerando que as normas de biossegurança do país não garantem o direito constitucional dos Filipinos a um ambiente saudável. No entanto, aplicam-se outros padrões ao Arroz Dourado que recebeu dezenas de milhões de dólares em fundos e é cabeça de cartaz da indústria, na sua tentativa desesperada de demonstrar que os OGM podem beneficiar as pessoas, por serem nutritivos.
Mesmo depois de os agricultores terem tentado discutir a questão com o Departamento da Agricultura, para manifestar a sua rejeição do cultivo, o governo filipino continuou a apoiar ao Arroz Dourado. Os camponeses defendem que, nos seus ecossistemas diversificados, há muito acesso a alimentos que contêm nutrientes suficientes, entre os quais a vitamina A, sem os riscos graves que representam os OGM. Dizem que em vez de apoiarem colheitas que apresentam riscos para os ecossistemas e a saúde da população, as autoridades deviam dar-lhes mais apoio nos seus sistemas agrícolas tradicionais diversificados.
A 13 de Agosto de 2013, sem conseguirem chegar a lado nenhum nas suas conversações com o governo filipino, os camponeses decidiram destruir um cultivo experimental de Arroz Dourado em Pili, Camarines Sur, onde estavam a ser realizados testes. Com essa ação, mostraram claramente não tolerar o avanço dos OGM. Contudo, os camponeses filipinos ficaram ultrajados porque os Media os acusaram de “vandalismo” e deram a entender que a sua ação tinha sido orquestrada por ONG internacionais que se teriam servido deles para destruir o arroz. Os camponeses e camponesas explicaram que foi sua decisão recorrerem à desobediência civil para defenderem o arroz como cultura essencial para a sua alimentação, a sua subsistência e a sua cultura. Embora os fundadores e apoiantes do Arroz Dourado continuem a perseguir o objetivo de comercializar o seu produto nas Filipinas, na Indonésia e no Bangladesh, no futuro próximo, os agricultores filipinos continuam a mobilizar-se e a protestar, prometendo não desistir da oposição ao avanço dos OGM.
Coreia do Sul: Camponeses e camponesas fazem campanhas para defender as sementes autóctones
Um dos principais aspetos da luta das camponesas da Coreia tem sido o apelo ao governo para apoiar as variedades das sementes autóctones. A primeira medida foi conseguir fazer com que o público e os oficiais do governo compreendessem a importância das sementes autóctones. Esse processo, que implicou audiências públicas e exposições sobre o valor das sementes autóctones, acabou por levar a um apelo por leis regionais para proteger e estimular as sementes autóctones. A primeira lei desse género chegou em 2008 e, atualmente, seis das nove regiões da Coreia do Sul já as implementam.
Uma lei exemplar é a de Gangwon, estipulando que o governo tem de desenvolver um plano abrangente para a promoção das sementes autóctones, os produtos que delas resultem e o seu consumo. A lei diz ainda que o governador da região deverá promover a investigação e a coleta de sementes, elaborando listas das sementes autóctones da região. Para além disso, em Gangwon, o governo não aplica a lei por si só, mas insere-a também num concelho em que as mulheres coreanas se destacam e se juntam ao representante do ministério da agricultura, para participar no processo de redação, revisão e avaliação das políticas. Apenas duas das seis regiões que aplicam a lei incluem a participação dos agricultores no conselho, mas isso é algo que os movimentos exigem noutras regiões. Um aspeto comum de todas as leis das sementes regionais é o apoio direto às sementes camponesas, através da distribuição gratuita de sementes autóctones, acompanhada de subsídios para os agricultores que as utilizem. Para além dessas leis regionais, as camponesas continuam a pedir a promoção local e específica das variedades de sementes locais, para que cada aldeia possa conservar as suas sementes históricas.
Tailândia: Resistir aos acordos de livre comércio para proteger as sementes locais
Há anos que os agricultores tailandeses resistem à pressão dos Estados Unidos e da Europa para adotar leis rígidas de propriedade intelectual sobre as sementes. Em 1999, no rescaldo da sua adesão à OMC, a Tailândia aprovou uma lei de PVP. Esta vinha como solução parcial para evitar leis mais severas, como as UPOV, que ameaçariam gravemente os 25 milhões de camponeses agricultores do país. Embora menos severa do que as UPOV, a lei de 1999 impõe algumas restrições àquilo que os agricultores podem fazer com as variedades protegidas por um certificado PVP. Podem reutilizar as sementes protegidas, mas na condição de cumprirem vários requisitos: têm de ter comprado as sementes originais; só as podem replantar nas suas próprias terras — o que significa que não as podem partilhar ou trocar; e, nalguns casos, devem respeitar limites de quantidade.
No contexto da negociação dos acordos de livre comércio (ALC) com a Tailândia, os EUA e a Europa exerceram pressão sobre o país no sentido de fortalecer os direitos de propriedade e de reforçar as correntes de receitas para a indústria das sementes. No âmbito do ALC com os EUA, a indústria das sementes queria que a Tailândia adotasse a UPOV ‘91 e lhe permitisse o patenteamento integral das plantas. Os camponeses tailandeses e outros movimentos sociais reagiram, criando fortes coligações que interromperam com êxito o processo do ALC. Em 2006, 10 000 agricultores e aliados enfrentaram a polícia e cercaram o local onde estavam a ser conduzidas as negociações do ALC EUA-Tailândia que, desde então, acabaram.
Em 2013, mais uma vez, milhares marcharam nas ruas de Chiang Mai, onde decorriam as conversações do ALC com a União Europeia. Segundo os projetos do acordo divulgados em fugas de informação, Bruxelas exigia que a Tailândia implementasse a UPOV ’91 — exigência essa a que os camponeses se opuseram veementemente. As conversações do ALC UE-Tailândia ficaram suspensas, mas estão quase a ser finalizadas as que decorrem com a Associação Europeia do Comércio Livre (Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça). Desse modo, os camponeses e camponesas permanecem em alerta máximo.
5. Europa: Os agricultores tentam resgatar a diversidade agrícola
Com a sua brutal e tão exportada legislação da comercialização das sementes, um sector empresarial das sementes implacável e a paisagem agrícola que prima pela industrialização, a União Europeia conta com a UPOV e o patenteamento das sementes. Por outro lado, conta com fortes movimentos camponeses e sociais que lutam pela defesa e pela promoção das sementes camponesas, contra as leis que ilegalizam a recolha e a troca das sementes e pelo desenvolvimento de alianças com os consumidores, as associações de agricultura biológica e outras, no sentido de pôr as sementes camponesas no centro de um sistema alimentar europeu mais diversificado, de controlo popular e local.
A União Europeia é preponderante na definição das leis das sementes europeias. Para além de serem aplicadas nos estados-membros da UE, essas leis também são exportadas para os países vizinhos da Europa de Leste e do Mediterrânico, através de acordos comerciais ou associativos. A norma PVP de 1994 (as empresas sementeiras podem obter direitos sobre as sementes, a nível nacional ou da UE) baseia-se na UPOV 1991. A diretiva relativa ao patenteamento, de 1998, permite o patenteamento de plantas ou animais geneticamente modificados nos estados da UE. Existe todo um conjunto verdadeiramente draconiano de normas de comercialização das sementes que Bruxelas tentou emendar nos últimos anos. As propostas, porém, foram rejeitadas e, por ora, o processo permanece suspenso. Apesar de não ser uma instituição da EU, o Instituto Europeu de Patentes atribui patentes vegetais por toda a Europa, com base na Convenção sobre a Patente. Tudo isso significa que os governos nacionais da região tendem a implementar a legislação europeia e podem ter os espaços de manobra limitados a nível nacional.
Recentemente, houve tentativas de reforma da legislação da UE sobre as sementes, em termos de comercialização, padrões sanitários e controlos. Agricultores, conservadores de sementes e movimentos sociais lutaram muito na oposição aos piores aspetos dessas mudanças. As necessidades e as estratégias variaram, como foram os casos da Áustria e da França. Mas o objetivo final é o mesmo: ver a diversidade prosperar nas mãos dos agricultores, dos jardineiros e das comunidades.
Áustria: Luta por legislação a favor da biodiversidade e dos direitos dos agricultores
Apesar de ser pouco favorável, a atual legislação da comercialização das sementes deixa algum espaço para que os agricultores e os jardineiros troquem e vendam certas quantidades de sementes tradicionais. Tal é possível, porque a UE permite que seus estados-membros tenham alguma rédea-livre em termos de implementação das leis, e as organizações de agricultores e conservadores de sementes da Áustria lutaram para conseguir uma forma não-exclusiva de registar as sementes tradicionais ao nível nacional ou europeu. Embora a venda dessas chamadas “variedades de conservação” se restrinja a uma determinada zona geográfica — o território da Áustria —, em resultado, muitos agricultores produtores de sementes, e não apenas um, podem registar a mesma variedade tradicional e vendê-la legalmente.
Tendo em conta esse espaço que criaram para eles próprios, os conservadores de sementes, consumidores e agricultores austríacos têm-se esforçado muito nos últimos anos na oposição a uma proposta do Parlamento Europeu de uma revisão da legislação da comercialização das sementes na UE que viria dificultar a venda de sementes camponesas pelos agricultores em vários estados-membros. Após várias ações de protesto, o âmbito da proposta foi alterado, para excluir as redes de conservadores de sementes. Apesar de pequena, essa vitória significa muito para os jardineiros e camponeses agricultores fora dessas redes! Para além disso, muito embora algumas sementes possam não estar sujeitas aos requisitos industriais EUE típicos, ou à obrigação de serem registadas no catálogo, surgiram outros problemas: restrições históricas e geográficas (Descrição Oficial Reconhecida); registo dos vendedores de sementes como comerciantes profissionais; registo de variedades de nicho de mercado; e requisitos de registo demasiado dispendiosos e burocráticos para a maioria dos agricultores.
Uma dessas exigências dos conservadores de sementes e agricultores austríacos é que todos os tipos de sementes — EUE e não-EUE, certificadas e não-certificadas, industriais e camponesas — pudessem ser comercializadas em pé de igualdade. O argumento é que os agricultores podem decidir por eles próprios de que tipo de sementes precisam. Por exemplo, uns agricultores poderão querer comprar sementes EUE que cumprem certos padrões, como as taxas de germinação, pureza ou rendimento, e outros, ter acesso a sementes normalmente não-certificadas e não-uniformes mais baratas. Para os conservadores de sementes e agricultores austríacos, isso significaria que poderiam vender as suas sementes sem se sujeitar a certificações e testes EUE dispendiosos e contribuindo para restaurar a diversidade nos seus campos e jardins. Para evitar casos de biopirataria, exigem um banco de dados institucional para o registo voluntário das variedades camponesas. O objetivo é ligar o nome tradicional às características específicas das variedades camponesas, com o mínimo de complicações burocráticas. Esse banco de dados serviria para evitar não só que a indústria se apropriasse dos nomes das variedades populares e lucrasse com a sua boa reputação, como também que os agricultores fossem proibidos de vender a variedade original com o devido nome original.
Opondo-se às normas de comercialização da UE, os austríacos fizeram coligações tanto com as organizações de agricultores, jardineiros e conservadores de sementes, da Áustria e de outros países, como com consumidores, chefs, jornalistas e alguns políticos. Assim, lançaram iniciativas como uma em que convidaram pessoas para plantarem batatas num campo, filmaram-nas e apresentaram os vídeos a alunos nas escolas. Para além disso, uniram forças com o movimento ambiental e o partido político dos verdes, para recolherem mais de 800 000 assinaturas contra a proposta legislativa.
Em 2014, após intensas atividades de lóbi, o Parlamento Europeu acabou por rejeitar, com grande maioria, a proposta de emenda da lei de comercialização das sementes. As organizações austríacas a liderar a campanha entenderam essa rejeição como uma vitória importante que lhes permitirá avançar na sua promoção dos direitos dos agricultores de guardar, reutilizar e vender as suas sementes, seguindo na direção de uma legislação das sementes visionária.
França: Extrema pobreza e leis de comercialização impostas às sementes
Tal como acontece na maioria dos países europeus, na França, as leis das sementes são muito restritivas e vigorosamente impostas, devido aos esforços dos lobistas da indústria e das suas organizações. Por outro lado, há leis de propriedade que proíbem os agricultores de conservar sementes de variedades protegidas. Só podem reutilizar as sementes de 30 espécies protegidas e têm de pagar direitos aos obtentores. No caso do trigo para o pão, quando entregam as colheitas os agricultores têm de pagar uma taxa e só são reembolsados aqueles que apresentarem recibo atestando a compra das sementes para esse trigo. Por outro lado, para a maioria das outras variedades, os agricultores franceses continuam a produzir as suas próprias sementes sem pagar direitos, pois a indústria não tem meios para os forçar a pagar. Foi por isso que, em 2013, a indústria das sementes propôs uma nova lei que rotularia a semente conservada nas terras como “contrafeita”. Sob os termos dessa proposta de lei, as empresas das sementes poderiam exigir a destruição das colheitas dos agricultores — sem terem de apresentar provas de que estavam a utilizar as suas sementes. Alguns agricultores franceses fizeram greve de fome para se oporem a essa proposta de lei que acabou por ser retirada em resultado da sua mobilização.
Sempre que quiserem vender as suas sementes, os agricultores têm de ser membros de uma associação profissional de produtores de sementes e de registar as variedades em causa. No caso dos cereais, também têm de certificar as sementes. Há anos que o processo jurídico contra uma associação que vende sementes tradicionais não-registadas está a fazer os cabeçalhos das redes sociais. Nesse contexto, as redes francesas de sementes camponesas têm sido ativas contra as propostas europeias visando não só facilitar a comercialização de sementes patenteadas, mas também privatizar os padrões e as medidas de controlo fitossanitários. As redes de camponeses apoiaram partes das propostas relativas à comercialização das sementes que consideravam poder melhorar significativamente a situação atual. Infelizmente, a indústria teve poder suficiente para levar o Parlamento Europeu a rejeitar essas partes das propostas.
Nos últimos dez anos, as pequenas empresas que produziam e distribuíam sementes tradicionais uniram-se numa importante rede de agricultores que, em colaboração com investigadores públicos, selecionam e disponibilizam essas sementes aos seus membros. As associações e as pequenas empresas a trabalhar em conjunto permitiram que milhares de agricultores deixassem de utilizar sementes industriais em muitos dos seus cultivos. Estabeleceram as “casas de sementes camponesas” onde as comunidades selecionam, reproduzem e conservam coletivamente as sementes camponesas. Para além de organizarem oficinas e trocas de sementes entre agricultores, desenvolvem novas formas de processar as colheitas nas suas terras, incluindo formas de fazer pão.
A rede também ajuda os agricultores a lidar com questões jurídicas e a encontrar soluções. Por exemplo, depois de ter anunciado publicamente a decisão de defender coletivamente todos os que forem obrigados a infringir a nova lei para conservarem as suas próprias sementes, algumas organizações descobriram lacunas na lei Europeia que permitem a troca de sementes entre agricultores para experiência e a venda de sementes não registadas nos catálogos a jardineiros. Apesar da rejeição das partes mais favoráveis das propostas europeias, em 2014 a rede conseguiu que se aprovasse uma nova lei francesa a autorizar a troca de sementes sem restrições para experiência, em parcerias agrícolas. Hoje em dia, preparam-se para recusar os padrões industriais que resultaram da privatização dos padrões e inspeções fitossanitários.
Alguns grupos optaram por agir em direta oposição às leis, com o objetivo de as transformar. Um exemplo é o movimento para impedir o cultivo de OGM. Nos casos em que o governo francês tenha autorizado o cultivo de sementes GM, os agricultores e ativistas praticaram desobediência civil, destruindo os campos de OGM (um movimento chamado “volunteer reapers of GMO”). [“ceifadores voluntários de OGM”]
O trabalho desses ativistas é cada vez mais criminalizado, pois, em França, esse tipo de atos já pode estar sujeito ao Código Penal. Mas, ao mesmo tempo, fonte de inspiração para iniciativas semelhantes noutros países, os seus atos contribuíram muito para reduzir o cultivo comercial de OGM em muitas partes da Europa.
O facto de que os OGM serem atualmente proibidos na maioria dos países da Europa deve-se ao trabalho de duas décadas das organizações de agricultores, dos movimentos sociais e das associações de consumidores que os rejeitaram com protestos, campanhas didáticas e ações jurídicas. De momento, só é permitido cultivar um tipo de planta GM na Europa — uma variedade de milho e, a maioria, 70 000 hectares, em Espanha. (Há áreas muito menores em Portugal, na República Checa, na Roménia e na Eslováquia.) Contudo, estão a ser conduzidos muitos ensaios de campo, em várias localidades, amiúde sem o conhecimento do público. Na Espanha, onde se realiza metade de todos os ensaios GM, os movimentos protestaram contra as experiências e as leis que as permitem. Organizaram-se ações de desobediência civil e de destruição dos ensaios de campo na França, na Alemanha e, mais recentemente, na Inglaterra, na Espanha e na Bélgica.
Os Media europeus tendem a retratar esses ativistas como criminosos. Essa atitude reflete-se nas leis que se tornaram mais agressivas no tratamento que dão aos atos de desobediência civil e muitas pessoas perderam o emprego por terem participado nessas ações. O movimento francês que destrói cultivos ensaio de GM escreve na sua carta: “Quando a lei privilegia os interesses particulares contra os públicos (…) a única escolha responsável dos cidadãos é confrontar esse estado de não-legalidade para restabelecer a justiça, mesmo arriscando-se a serem condenados ao pagamento de multas ou, até, a penas de prisão.”
Alemanha: Uma vitória pela defesa das sementes agrícolas e uma campanha para salvar a batata “Linda”
Os agricultores alemães organizaram uma campanha de resistência legal contra o pagamento de direitos de utilização das sementes agrícolas das variedades protegidas por um certificado PVP. Foram aos Tribunais de Justiça Europeus para ter o direito de cultivar as sementes que quisessem, fossem elas comerciais ou criadas nas próprias terras, sem terem de notificar os obtentores. Assim, os obtentores perderam o único método simples que tinham à disposição para exigir pagamentos de direitos.
As leis restritivas relativamente aos tipos de sementes que podem ser vendidas deixaram os agricultores alemães com muito pouca escolha sobre o que plantar nas suas terras, pois ficam limitados a um número reduzido de variedades industriais e uniformes. Alguns poderão preferir uma determinada variedade que depressa pode desaparecer caso deixe de ser rentável para a empresa obtentora. Foi o que aconteceu em 2004, quando a empresa de sementes alemã, Europlant, retirou a “Linda”, uma popular variedade de batata. Passado o prazo de 30 anos de propriedade exclusiva da “Linda”, atribuído por um certificado PVP, acabaram-se as taxas de licença de 10-15% sobre o preço a cobrar por cada semente da referida batata. A partir do momento em que os obtentores da Europlant pediram para se retirar a “Linda” do catálogo, os agricultores que a cultivassem comercialmente passariam a infringir a lei. A “Linda” desapareceria do mercado e seria substituída por novas variedades por que já se poderiam cobrar taxas de licença rentáveis.
No entanto, graças à resistência organizada dos agricultores e a uma boa campanha mediática, meses depois, a Alemanha inteira era palco de uma forte campanha intitulada “salvem a batata Linda”. Os consumidores alemães, que geralmente sabem identificar bem dois tipos de produto — maçãs e batatas —, reconheceram a “Linda” como batata apreciada e apoiaram os agricultores. Foi, então, decidido em tribunal que a “Linda” poderia permanecer mais dois anos no mercado. Depois disso, a “Linda” deixou de preencher os requisitos estritamente necessários para constar do catálogo alemão. No entanto, hoje já está novamente disponível para os agricultores da Europa inteira, porque a sua venda foi autorizada noutro país europeu, desta vez, na Inglaterra. A batata “Linda” é considerada uma história de sucesso contra a indústria. Mas o incidente também serviu para que os agricultores tomassem consciência do quanto dependem do mercado e dos caprichos das empresas que só comercializam as variedades de sementes lucrativas.
Grécia: A crise devolve as sementes camponesas aos campos
Os agricultores gregos podem candidatar-se a receber subvenções para as suas colheitas, aquilo a que se chama um “ bónus de qualidade”. Mas o padrão do que se considera alta qualidade está cada vez mais vinculado à utilização de sementes certificadas, especialmente em cultivos de campo como o de trigo-duro a cujo subsídio os agricultores só podem aceder se apresentarem uma prova de compra. Apesar disso, alguns ainda utilizam variedades de trigo mais antigas, tradicionais das zonas onde cultivam. Por exemplo, na região da Tessália, o preço crescente do trigo comercial e a redução de subsídios para os cultivos comerciais concorrentes, como o do algodão, levaram os agricultores a fazer experiências com outras variedades que eram populares há 50 anos e que ainda se encontram no catálogo nacional. Dessa forma, os campos que eram cultivados com as variedades industriais, são agora cultivados com tipos de trigo mais antigos, como o “mavragani”, com as suas barbas características mais escuras. O mesmo se aplica a outros cultivos, como os de uva, melão, beringela e árvores de fruta.
Acresce que as sementes camponesas estão a reaparecer, na Grécia, sobretudo graças ao crescente número de jovens que regressam à agricultura. No rescaldo da crise financeira em que os jovens fazem face a taxa de desemprego que chegam aos 50%, as pessoas voltam à terra. Muitas ainda têm família nas zonas rurais e conseguem acesso à terra. Interessa-lhes a produção local e muitas querem fazer adotar as práticas camponesas tradicionais e utilizar as sementes camponesas. Nos últimos anos, refletindo esse interesse, as organizações de conservação das sementes têm organizado trocas e festivais das sementes, com milhares de pessoas a trocar as variedades que os seus avós ainda utilizam e a selecionar sementes, para aumentar a diversidade nos seus campos e jardins. No seu entender, estão a resgatar o património mais valioso da Grécia, uma vez que as estimativas apontam para apenas 1% das terras agrícolas do país ainda cultivado com variedades mais antigas de cereais e legumes. Quanto ao banco nacional de sementes, onde ainda se conservavam muitas das variedades mais antigas, a falta de fundos devida a cortes orçamentais levou à destruição de 5000 das 14 500 variedades aí conservadas.
Os grupos que participaram no movimento da conservação das sementes são, na sua maioria, formados por pequenos jardineiros. Mas, à medida que as pessoas voltam à terra e passam a viver dela, o número de agricultores que participam também vai aumentando. Um dos principais desafios que enfrentam é o facto de o conhecimento sobre seleção das sementes não ter passado para as gerações mais jovens. Em resultado, nos últimos anos, o movimento das sementes na Grécia centrou-se na promoção de formações em seleção das sementes, em escolas espalhadas por todo o país. Para além de partilharem know-how prático e de estabelecerem casas de sementes comunitárias, as escolas debatem a situação dos agricultores e as opções que os agricultores têm quanto à venda e ao processamento das suas colheitas.
Itália: Uma grande diversidade de leis regionais
A Itália é um caso único, porque as suas 20 regiões têm alguma autonomia na criação das leis regionais. Isso motivou experiências interessantes em que as organizações italianas exigiram leis regionais para favorecer as sementes locais. Por exemplo, no Lácio, as espécies de animais e sementes camponesas locais podem ser reconhecidas como património coletivo e ninguém as pode declarar propriedade privada ou monopolizar a sua utilização. Noutra região, a de Abruzos, a lei ajudou a travar a privatização de uma variedade se sementes locais por um banco suíço. Desse modo, ao nível regional, algumas organizações de agricultores continuam a fazer pressão no sentido de essas leis se alargarem e ultrapassarem o âmbito dos pequenos nichos, para dar lugar às sementes camponesas numa escala superior. Ao mesmo tempo, estão bem cientes de como se podem interpretar essas leis. Por exemplo, a utilização coletiva também foi interpretada no Lácio sob a perspetiva de esquemas de indicação geográfica que excluem os agricultores. Embora os criadores de ovelhas em pequena escala tenham começado por receber bem a lei relativa a uma raça de ovelha cujo leite era excelente para queijo, a verdade é que, vários anos depois, muitos deles tinham sido excluídos e só uma minoria fora beneficiada. Hoje em dia, a maioria dos criadores de ovelhas do Lácio é contra as IG.
Mais recentemente, os agricultores italianos têm lutado contra várias leis que consideram claramente negativas. Uma é fitossanitária. Sob o pretexto das medidas sanitárias, a troca de sementes de certas espécies foi altamente restringida, o que afeta muitos vinicultores. Para além disso, os agricultores italianos opõem-se atualmente às tentativas para enfraquecer a lei que tem mantido os OGM fora do país. Na Itália, existe uma forte coligação composta por associações de consumidores, movimentos sociais, pequenos agricultores e, até, agricultores comerciais de maior escala contra os OGM. (Os agricultores industriais em escala superior também não querem os OGM, porque receiam que a sua presença afete negativamente a exportação agrícola da Itália.) Contudo, as vigorosas normas nacionais podem ser enfraquecidas por acordos supranacionais. Pode ser o caso do Acordo de Comércio Livre que está a ser negociado entre os Estados Unidos e a União Europeia; pode ser também o caso das novas medidas legais atualmente em debate no Parlamento Europeu acerca da forma como os OGM devem ser autorizados.
Por outro lado, há quem trabalhe para reclamar as sementes, contornando as leis. Os agricultores organizam-se tanto em redes de produção e consumo diretos como em coletivos de jardinagem. Um dos objetivos é acabar com a dependência na indústria das sementes. Trocam localmente as sementes em grandes eventos anuais de troca de sementes. Embora a certificação biológica dos produtos os obrigue a utilizar sementes biológicas certificadas e a pagar às instituições certificadoras, os agricultores preferem vender os seus produtos diretamente nas suas próprias zonas, fazendo diferentes tipos de pão com todas as variedades de cereais e processando as suas próprias verduras.
Reino Unido: Utilizar lacunas na lei para forçar uma mudança legislativa
No RU, as pessoas que queiram dedicar-se à agricultura em pequena escala têm dificuldade em aceder não só à terra, mas também às sementes não-industriais. Nos últimos anos, organizaram muitos intercâmbios e feiras de sementes, onde se trocam variedades tradicionais e se aprende sobre a seleção das sementes. Contudo, os grupos de sementes do RU trabalham quase exclusivamente com sementes de legumes e raramente com sementes de cereais. Desse modo, os novos agricultores que queiram trabalhar com as variedades de cereais antigas têm mais dificuldade não só em obter desde logo as sementes, como também em pô-las a circular, depois de as obterem. As variedades não-EUE mais antigas de trigo, centeio, cevada, farro ou espelta não estão registadas no catálogo, pelo que as suas sementes não podem ser vendidas legalmente.
Não foram os agricultores quem começou a procurar esses cereais e sim processadores, como os padeiros que queriam reclamar a padaria tradicional, para a qual necessitariam de outros tipos de farinha. Mais recentemente, a procura também surgiu da parte dos destiladores de bebidas alcoólicas, como o whiskey e, até, de pessoas que fazem tetos de palha. Ao contrário do que acontece noutras zonas da Europa, onde os tetos de palha são feitos com juncos da água, no RU e na Irlanda, utiliza-se palha das colheitas de cereais. Para isso, porém, são necessárias as variedades mais antigas de pé alto, pois as plantas anãs modernas não servem.
Para ultrapassar os obstáculos legais à venda dessas variedades de sementes, os agricultores que selecionam e produzem as sementes criaram esquemas criativos. Por exemplo, poderão licenciar e não vender as suas sementes. Assim, evitam uma “transferência de propriedade” (vendendo ou trocando as sementes) que seria proibida por lei. Embora a indústria esteja contra e tente travar essa prática, os agricultores podem refugiar-se nessas lacunas. E dizem que quantos mais se juntarem a eles e quanto mais consumidores os apoiarem no esforço de devolver a diversidade ao mercado, mais hipóteses terão de conseguir fazer com que as leis mudem a seu favor.
Ao mesmo tempo, alguns agricultores têm cautela. Entendem que a par da crescente popularidade do mercado dos pães artesanais, existe uma nova iniciativa industrial, pronta a agarrar essa oportunidade para fazer dinheiro com um novo produto. Apesar de serem comercializados como produtos que utilizam as variedades “tradicionais” ou as chamadas variedades “patrimoniais”, muitos desses produtos misturam as antigas variedades com as novas e todas elas são cultivadas em grande escala, com insumos químicos. Para poderem prosperar, as sementes camponesas devem integrar-se numa sociedade que realmente apoie a produção e o consumo não-industrial, resistindo a quem comercializa as sementes como a sua mercadoria mais recente. Tal como em qualquer outro lugar, no RU, a luta pelas sementes camponesas é indissociável da luta pela agricultura camponesa
Os esforços tremendos das organizações de agricultores, dos movimentos sociais e dos grupos da sociedade civil para combater as leis das sementes empresariais por todo o mundo resultaram, com os anos, nalgumas iniciativas que, em certas ocasiões, geraram debate ou controvérsia. Destacamos algumas, por serem bastante comuns. As discussões e os debates prosseguem. O desafio é aprender a organizar a partilha das sementes de formas que evitem a sua privatização ou destruição por terceiros.
- Pedir “sementes livres” parece natural, porque os agricultores e jardineiros querem utilizar a trocar livremente as sementes. No entanto, falar de sementes livres sem referir a sua proveniência reduz o papel das comunidades camponesas e indígenas que dão vida às sementes. Esta iniciativa pode promover a livre circulação de sementes sem o conhecimento e as responsabilidades que elas acarretam. Pode ser confundida com um sistema de “mercado livre” em que qualquer pessoa e, sobretudo, as grandes empresas, podem abarbatar as sementes onde quiserem e em que as comunidades perdem totalmente o seu controlo. Precisamos de normas sobre as sementes.
- Alguns grupos fazem campanha por “sementes de código aberto”. Tal como acontece com o software de código aberto, é preciso aplicar licenças às sementes para impor a condição de ninguém as poder privatizar. Contudo, essas licenças são ferramentas de propriedade intelectual — implicam direitos exclusivos e trabalhar no sistema comercial — e não são necessariamente as mais indicadas para as sementes ou os pequenos agricultores.
- Os registos ou catálogos comunitários são listas compiladas pelas comunidades que descrevem as variedades das sementes: as características; os nomes; as proveniências; os modos de cultivo; as utilidades. Essas listas são entendidas como uma ferramenta para evitar a privatização, a apropriação indevida ou a perda das sementes e do conhecimento relacionado com elas, bem como para capacitar as comunidades na sua luta para proteger as sementes. No entanto, a capacidade dos registos e catálogos para evitar a privatização ou a apropriação indevida das sementes é questionável. As autoridades que concedem direitos de propriedade sobre as sementes às empresas de sementes, com base em dados genéticos ou bioquímicos, não têm em consideração os critérios de descrição utilizados pelos registos e catálogos comunitários. Consequentemente, o mais provável será as autoridades não aceitarem esses registos ou catálogos como prova de apropriação indevida das sementes em causa. Ao mesmo tempo, quando a informação é centralizada num livro, numa pintura, numa base de dados ou noutro suporte, o conhecimento torna-se mais acessível para governos, investigadores e empresas, o que facilita a biopirataria.
- Por vezes, as pessoas querem organizar eventos internacionais e maciços de troca de sementes para contrariar a ganância empresarial e a uniformidade do mercado — expondo a diversidade, celebrando-a e pondo-a ao serviço do maior número de pessoas possível. Mas a deslocalização de colheitas e as tentativas para as espalhar pelos cantos mais recônditos do mundo, na verdade, podem promover a degradação cultural, a perda das variedades locais e, até, o imperialismo (como o caso da promoção de tomates europeus na América Latina).
- Várias iniciativas visam a proteção das sementes populares em leis. Os direitos dos camponeses são-lhes inerentes e inalienáveis, e isso tem de ser reconhecido a nível nacional e internacional. Mas, traduzidos nos quadros legais, podem muito bem ser diluídos, deformados ou degradados. Reduzidos a “isenções” ou “privilégios”, os direitos dos camponeses e das comunidades não podem depender de uma autorização especial nem estar sujeitos a leis de propriedade intelectual ou acordos comerciais. As experiências dos países em que essas iniciativas avançaram não são nada encorajadoras. Os governos tendem a fazer o reconhecimento dos direitos da comunidade depender da sua aceitação dos direitos de propriedade intelectual das empresas sobre as sementes. A longo prazo, isso significa que não se respeitam os direitos da comunidade.
Tal como se vê nos exemplos citados neste documento, as batalhas jurídicas nem sempre são bem-sucedidas. No entanto, são frequentemente indispensáveis para a consolidação das vitórias — que, num sistema legal e comercial concebido para as destruir, são sempre parciais — e para garantir a sobrevivência dos agricultores de pequena escala e das suas sementes.
Conclusão
Não restam dúvidas de que passamos por um período difícil que abala os alicerces da nossa própria capacidade para permanecer no campo. Mas, tal como tantos casos ilustram — incluindo alguns dos que aqui apresentamos —, a experiência prática prova que é possível resistir e, até, vencer.
As lutas que aqui partilhámos ensinam-nos coisas diferentes; são lições que se repetem muitas vezes.
Por exemplo, ficámos a saber que, felizmente, a maioria das pessoas compreende perfeitamente que a privatização das sementes é uma aberração. Se os governos e as empresas recorrem a estratégias de secretismo e falta de transparência é precisamente por saberem que uma cidadania informada rejeitará claramente a privatização das sementes. Uma das nossas principais tarefas é, por isso, quebrar esse secretismo e informar as pessoas tanto quanto possível. Esta brochura serve como ferramenta informativa para apoiar o trabalho das organizações e de todos nós, informando e explicando-nos. Assim, instamos toda a gente a utilizá-la, bem como a utilizar o cartaz e os anexos que a acompanham, de todas as formas possíveis: selecionando o que for mais útil, traduzindo, adaptando, extraindo secções, acrescentando informação local, etc.
Também ficámos a saber que os esforços para defender as sementes podem ser bem-sucedidos se se basearem em mobilizações amplas e diversificadas. Para termos hipóteses de vencer, é fundamental contar com a união e o envolvimento das organizações camponesas e indígenas. Tal como é muito importante o apoio dos estudantes, dos trabalhadores, dos agricultores urbanos, dos consumidores, dos ambientalistas, dos pequenos comerciantes, dos jovens, dos artistas, etc.
Os defensores da privatização das sementes procuram justificar-se com um conjunto de mitos e falsidades que repetem vezes sem conta: são precisas novas sementes para melhorar a produção; sem leis de privatização as empresas não produzirão sementes, etc. É, portanto, fundamental para nós, destacarmos que as leis das sementes não garantem qualidade; pelo contrário, dão mais oportunidades às empresas para venderem sementes que não prestam e aplicarem outros mecanismos de controlo. Nem sempre é fácil desconstruir a propaganda, mas o que não falta é material informativo disponível que, tal como esta brochura, pode ser utilizado e adaptado.
Pelo mundo inteiro, comunidades e organizações de base sabem que a melhor forma de defender as sementes — e de defender as práticas de utilização e partilha que as mantêm vivas — é continuar a cultivá-las, cuidá-las e trocá-las, em todas as localidades. Manter os sistemas agrícolas vivos é a melhor maneira de manter as sementes vivas. As diversas variedades vegetais prosperam se as cultivarmos e as utilizarmos na alimentação, mantendo-as presentes nos nossos festivais, mercados e interações sociais. É precisamente isso que inúmeros grupos estão a fazer, organizando feiras e festivais de alimentos, eventos de troca de sementes e processos comunitários de obtenção de sementes, tal como os grupos que lutam para proteger ou reativar os mercados locais.
Com estes relatos de lutas, também ficámos a saber que é importante travar o processo legislativo, porque, uma vez aprovadas as leis, a resistência torna-se mais difícil e complexa. É uma tarefa complicada, porque o setor privado e a maioria dos governos utilizam toda a sua capacidade e todo o seu poder para impor leis das sementes; com tanta pressão, muitos legisladores acabam por votar a favor das propostas de lei, sem sequer terem conhecimento das suas consequências. Os perigos e as aberrações legais dessas leis são claros e indiscutíveis — e é crucial dá-los a conhecer ao público e, até, aos próprios legisladores. Ironicamente, é-nos vantajoso que não sejam os governos a elaborar a maioria dos projetos-lei sobra a privatização das sementes e sim pela OMPI, por grupos de lobistas empresariais, ou pela UPOV. Em resultado, são todos muito parecidos, o que facilita muito a tarefa de lhes identificar as armadilhas e os perigos. A tabela que acompanha esta brochura identifica algumas dessas ameaças, mas há outras análises que podem ser adaptadas localmente (veja Avançar).
Por fim, a lição mais importante a aprender talvez seja que esta é uma longa batalha. A experiência que temos em comum é que, depois do curto interregno que se seguiu à derrota de uma lei das sementes, as empresas e o governo voltam à luta. E, se vencerem, nunca deixarão de querer mais. Temos de estar sempre preparados para outra ronda de resistência e luta na defesa das nossas sementes.
Glossário
Biopirataria A biopirataria é a prática de retirar as sementes, plantas ou o conhecimento de uma comunidade. No caso das sementes, há muitos exemplos de empresas que usurpam as variedades camponesas populares, utilizando os seus nomes para denominar produtos novos e atraentes. Mas toda a obtenção vegetal industrial pode ser considerada pirataria, porque o ponto de partida são sempre as sementes camponesas.
Catálogo O Catálogo é um sistema que faz parte das leis de comercialização das sementes de alguns países onde se estipula que só se podem comercializar as sementes listadas e descritas num catálogo. O catálogo é semelhante ao registo.
Este sistema começou na Europa e tornou-se um modelo desde então exportado para muitos países. É comum as sementes não conformes com os padrões EUE do Certificado de Variedade Vegetal não constarem do Catálogo. Nesses países (a maioria dos quais pertence à UPOV), isso garante o monopólio absoluto do mercado para as sementes passíveis de proteção com direitos de propriedade intelectual. Em geral, as variedades não listadas no catálogo oficial podem ser cultivadas mas não vendidas ou trocadas.
Sementes certificadas Há casos em que as sementes só podem ser comercializadas se forem certificadas. As sementes certificadas têm de ser cultivadas de determinada forma e passar testes para apurar qualidades físicas, como a taxa de germinação ou pureza, e as qualidades da variedade.
EUE Significa Especificidade, Uniformidade e Estabilidade. É a base da obtenção e produção de cultivos industriais. Específica significa que a variedade é diferente de outra. Uniforme significa que as plantas de uma variedade têm as mesmas características. Estável significa que as características da variedade passarão para as gerações seguintes. Os padrões EUE foram inicialmente desenvolvidos para determinar os tipos de sementes de cultivo que a ser registadas em catálogos para poderem ser comercializadas. Posteriormente, os padrões EUE passaram a aplicar-se também ao estabelecimento de direitos de propriedade intelectual sobre as plantas. Desse modo, os certificados PVP também se baseiam nos padrões EUE. As sementes camponesas, pela sua própria natureza, não se enquadram nos EUE.
Acordos de Livre Comércio (ALC) Estes acordos são estabelecidos entre dois ou mais países que liberalizam o comércio (eliminam quotas e tarifas) e harmonizam as normas a favor das empresas transnacionais. Contêm muitas vezes requisitos para privatizar as sementes pelo patenteamento ou a PVP. Caso essas disposições não sejam implementadas, as empresas de um país podem instaurar um processo ao governo de outro.
Indicação Geográfica É um tipo de direito de propriedade intelectual concedido para um produto agrícola específico, produzido numa dada localização. Muitos desses produtos são produzidos com recurso ao conhecimento tradicional, claramente definido por especificações. Em resultado, os produtores exteriores a essa região ficam proibidos de utilizar o nome da variedade de cultivo ou do produto em causa.
OGM Significa “Organismos Geneticamente Modificados”. São plantas de cultivo desenvolvidas com recurso a novas técnicas de biotecnologia para criar tipos de plantas radicalmente diferentes das que surgiriam no mundo natural. Os OGM são desenvolvidos em laboratórios. Os agricultores que os observaram e muitos estudos científicos que os analisaram notam que esta forma de reproduzir as sementes é perigosa para os ecossistemas agrícolas e para os seres humanos. Os OGM são geralmente protegidos por patentes.
Revolução Verde É o nome de um programa de “modernização” agrícola que visa produzir insumos baratos para a indústria e alimentos baratos para as cidades. Sob este esquema que transformou a Ásia e a América Latina nos anos 1960-1970, as sementes camponesas foram substituídas por sementes desenvolvidas em centros de investigação, o que provocou uma grave perda de variedades tradicionais. As novas sementes eram promovidas como “variedades de alto rendimento”, mas, para conseguirem esses tais rendimentos elevados, necessitavam de insumos químicos e de irrigação atempada, ou seja, exigiam acesso ao crédito. Esse modelo de produção arruinou os solos, substituiu os camponeses e agricultores por máquinas e endividou-os, prejudicando seriamente a saúde das comunidades e dos seus ecossistemas. Está a ser atualmente imposto na África.
Híbridos São sementes industriais que, se cultivadas com insumos externos nas condições recomendadas, produzirão uma grande colheita no primeiro ano, mas não no segundo, o que as torna inviável para a conservação das sementes. Algumas pessoas dizem que a hibridização é uma “patente biológica”, porque o declínio garantido no rendimento implica que as pessoas deixarão de quer reutilizar a semente.
Variedades Industriais São as sementes desenvolvidas para a agricultura industrial. Em geral, isso significa que necessitam de condições de crescimento de alta tecnologia e insumos externos, como fertilizantes, pesticidas e irrigação atempada, ou sejam, implicam acesso ao crédito. Em geral, as variedades obtidas para o cultivo em monoculturas, são colhidas por máquinas, enviadas a longas distâncias e duram muito nas prateleiras dos supermercados ou nos armazéns. Essas variedades são normalmente desenvolvidas ora por empresas que as patenteiam ou reivindicam proteção de variedade vegetal sobre elas, ora por institutos nacionais de investigação que podem também obter direitos de propriedade sobre elas. As variedades industriais são o oposto das variedades camponesas.
Leis da propriedade intelectual Reconhecem as sementes e as plantas como propriedade privada e dão aos obtentores o monopólio sobre a sua comercialização. As duas formas mais comuns de propriedade intelectual para as plantas são as patentes e os certificados PVP. O intuito de declarar as sementes propriedade intelectual é deixar as empresas das sementes lucrar, licenciando as sementes em causa a outras empresas que as multiplicam a comercializam e cobrando direitos de utilização aos agricultores que veem obrigados a comprar outras novas, todos os anos. A lógica é que isso incentivaria o desenvolvimento das indústrias agrícolas de bom desempenho. Muito pelo contrário, só obtemos monopólios, monoculturas e repressão.
Patentes São uma forma da chamada propriedade intelectual. As patentes são usualmente concedidas para novas invenções e garantem aos proprietários um período de vários anos em que podem comercializar exclusivamente o produto. Embora seja difícil encará-los assim, os seres vivos, como as sementes de cultivo, são cada vez mais entendidos como invenções e sujeitos a patentes, sobretudo desde o advento dos OGM. Da mesma forma, hoje em dia, para muitos certificados PVP, as patentes reconhecem direitos de propriedade não só sobre as sementes, mas também sobre os cultivos, depois da sua colheita e, até, do seu processamento. A proteção das variedades vegetais e as patentes desenvolveram-se como sistemas diferentes, mas já se complementam, ao garantirem à indústria fortes direitos de propriedade sobre as plantas.
Variedades camponesas O mesmo que sementes camponesas, refere-se a sementes de cultivo desenvolvidas por agricultores em pequena escala, respeitando as condições locais, para aprovisionar as necessidades locais. Adaptam-se geralmente bem à policultura, não precisam de recursos exteriores, dão-se bem no solo e nas condições climáticas locais e são amiúde selecionadas coletivamente por comunidades, famílias ou associações de camponeses. As sementes camponesas são normalmente partilhadas e trocadas. Embora nunca estejam sujeitas à propriedade intelectual, podem ser vendidas ou negociadas. São o oposto das variedades industriais. Nas suas leis, os países-membros da UPOV definem variedade de sementes como sendo homogénea e estável: portanto, nesses países a variedade camponesa não é considerada variedade e, como não tem definição legal, é ilegal.
Proteção das Variedades Vegetais (PVP) Ocasionalmente chamada direito de obtenção vegetal (DOV), é um sistema legal parecido com o patenteamento que concede aos obtentores direitos de propriedade sobre as novas variedades. Sob as leis PVP nacionais ou regionais, é emitido um certificado PVP ao obtentor por uma nova variedade que cumpra os requisitos EUE (ver acima). Desse modo, o obtentor obtém direitos legais para impedir que terceiros utilizem, produzam ou reproduzam a variedade em questão, em geral, por um período de entre 20 a 25 anos. Internacionalmente, são os membros da UPOV que redigem e promovem os princípios comuns para a proteção das variedades vegetais.
Direitos de propriedade Referem-se à concessão legal de direitos de propriedade privada sobre as sementes. Veja “direitos de propriedade intelectual”.
Proteção Diz-se que uma variedade de cultivo é “protegida” quando está sujeita a um título de propriedade intelectual, como uma patente ou um certificado PVP. Isso significa que não pode ser livremente utilizada; é privatizada. (Na realidade, o que se protege são os direitos do proprietário.)
Certificado PVP É um título de propriedade que uma empresa obtém sobre uma variedade protegida sob o sistema PVP.
Registo É uma lista ou um conjunto de dados. Alguns países proíbem a comercialização das sementes que não sejam registadas. É igual ao sistema de catálogo. Alguns grupos ou redes de agricultores também utilizam registos para identificar e controlar a circulação das sementes locais (variedades camponesas).
Royalty O royalty é a taxa que o proprietário de um certificado PVP ou de uma patente pode cobrar pela utilização das sementes que ele ou elas diz ter desenvolvido.
Exterminador Terminator é o nome popular de um GM particularmente perigoso que foi modificado para ser infértil, após a primeira geração. O exterminador não existe no mercado e está atualmente sob uma moratória efetiva.
Marcas registadas Tipo de propriedade intelectual que reconhece a utilização exclusiva do nome de um ou mais produtos associados. Frequentemente utilizadas para privatizar variedades de cultivo.
TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights, ou seja, Aspetos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual. É um acordo internacional da Organização Mundial do Comércio (OMC), assinado em 1994. Os 158 países que pertencem à OMC têm de cumprir o TRIPS. Estes estipula que os estados podem recusar-se a patentear plantas ou animais (para além de microrganismos), mas que têm de permitir um qualquer tipo de proteção da propriedade intelectual sobre as variedades vegetais. Para implementar esse requisito, muitos países adotaram leis de Proteção das Variedades Vegetais que proíbem os agricultores de reutilizar as sementes das suas próprias terras. Sob os ALC, que vão mais para além do que a OMC, os EUA, a Europa e o Japão pressionam os outros países a aderirem à UPOV, a assinarem a UPOV ‘91 e/ou a permitir o patenteamento das plantas.
UPOV Significa União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais. É um grupo de 72 países que utilizam padrões legais comuns, redigidos numa convenção de PVP que tem várias versões. As primeiras versões, como a UPOV ’78, concedem à empresa que desenvolve uma nova variedade o direito exclusivo de a comercializar, mas permite que os agricultores reutilizem as sementes. A última revisão, a UPOV ’91, proíbe os agricultores de reutilizar as sementes protegidas, salvo em determinadas circunstâncias. Para além disso, permite o confisco de sementes, cultivos, colheitas e bens processados que delas advenham, impondo penas de prisão em casos de infração.
Organização Mundial do Comércio (OMC) É uma organização internacional cujos membros negoceiam e implementam normas comerciais a nível global, impondo sanções ao incumprimento. A maioria dos países do mundo é membro da OMC e tem de cumprir as suas regras. No que se refere às sementes, o aspeto mais importante da OMC é o acordo TRIPS.
Acrónimos
ARIPO: Organização Regional Africana da Propriedade Industrial
CAFTA: Acordo de Comércio Livre da América Central
CFA: nome de duas moedas utilizadas na África, o franco CFA da África Ocidental e o franco CFA da África Central (Franco das Comunidades Financeiras da África)
COMESA: Mercado Comum da África Oriental e Austral
EUE: Especificidade, Uniformidade e Estabilidade
FAO: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
ALC: Acordos de Livre Comércio
OGM: Organismo Geneticamente Modificado
ITPGRFA: Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura
MCC: Millenium Challenge Corporation
OAPI : Organização Africana da Propriedade Intelectual
PVP: Proteção das Variedades Vegetais
SADC: Comunidade de Desenvolvimento da África Austral
TRIPS: Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio
UPOV: União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais
USAID: Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional
OMC: Organização Mundial do Comércio
A GRAIN é uma pequena organização internacional sem fins lucrativos que trabalha para apoiar os pequenos produtores e os movimentos sociais nas suas lutas por sistemas alimentares controlados pelas comunidades e baseados na biodiversidade. Para mais informação, consulte www.grain.rg.
La Via Campesina é um movimento internacional de organizações de base que defende a agricultura sustentável em pequena escala, como forma de promoção da dignidade e da justiça social. Reúne milhões de camponeses e camponesas, agricultores e agricultoras de pequena e média escala, pessoas sem-terra, povos indígenas, migrantes, trabalhadores e trabalhadores agrícolas e jovens do mundo inteiro.
Opõe-se veementemente à agricultura de motivação empresarial e às empresas transnacionais que marginalizam as pessoas e destroem a natureza.
Conta com 164 organizações-membros em 73 países do mundo inteiro.